Quando o sol apontava no horizonte iluminando a Serra Geral e acordando a minha querida terra natal, Dianópolis – GO/TO, a alegria da casa dos meus tios Aníbal e Guiomar já contava com minha presença, pronto aos desafios que se anunciavam para meu mundo infantil.
Os primos Vi(Alvimar), Renato e Edmar transformavam cada dia meu em nova etapa, sempre despretensiosa e cada vez mais alegre e que preenchia meu mundo de então. Naquela casa simples, com seu imenso quintal, estava o grande desafio do tempo e da nossa existência. Em tudo um ambiente de harmonia. Razão suficiente para fazer daquele local um palácio de ilusões que satisfaziam meus sonhos de criança.
Era, sem sombra de dúvida, a continuação da casa dos meus pais, separada dali apenas por uma praça e onde eu vivia momentos únicos junto aos meus outros nove irmãos e aprendi que o amor e a solidariedade estão acima de tudo.
Impressionante, sob todos os aspectos, a dedicação e obediência, muito raras nos dias hoje, que devotávamos aos meus tios, que com humildade estampada nos rostos e gestos, sabiam impor suas vontades nos momentos necessários, provando que a simplicidade, o amor e o respeito são trigêmeos e devem andar sempre juntos.
Era num dos cômodos do fundo daquela casa que se encontrava a velha estiva (tulha), sempre cheia de cereais, que fraternalmente aquecia e apressava a maturação das frutas da estação ali colocadas e que saciavam nossos quase insaciáveis apetites.
Quantas manhãs ou tardes quentes refrigeradas no banheiro público masculino, denominado biquinha ou no Córrego Getúlio, para onde nos dirigíamos, diariamente, em especial nos finais das tardes! Em todas as cidades do interior existem lugares assim…
E quando o sol reverberava na indescritível beleza da Serra Geral, transformando-a na miragem de uma cidade bem iluminada e distante, sempre inatingível, anunciando que o entardecer estava chegando, partíamos para um pequeno sítio de propriedade do meu tio, que ficava próximo da cidade, para recolhermos o gado para a ordenha do dia seguinte. Como bate forte em minhas lembranças aquele pedacinho de cerrado! Ali estava um recanto do céu. Os espinhos pontiagudos a perfurar nossos corpos quando buscávamos os frutos vermelhos e saborosos do veludo (uma pequena fruta típica dos brejos do cerrado), agora, entendo, eram alfinetes da natureza que até hoje insistem em não deixar que nos esqueçamos daquele tempo.
Sabíamos quais os primeiros e mais gostosos cocos xodó ou macaúbas, amadureciam naquela redondeza. Os imensos ingazeiros com seus galhos frágeis, transformando-nos em trapezistas inocentes em busca de suas vagens de polpas brancas, macias e doces, que mais pareciam pacotinhos de algodão doce preparados por algum anjo de plantão. Sal para o gado, que aproveitávamos para saborear com manga verde (toda criança gosta, ou pelos menos gostava).
O velho carro de boi, transportando areia do barrocão, (denominação dada ao local onde se extraía areia para construções e devido àquela exploração, seus barrancos eram altos, onde a criançada se divertia com saltos mortais e outras estripulias) e tijolos fabricados na olaria da fazendinha, levados em noites de lua cheia. O canto triste dos seus eixos eram músicas clássicas compostas pela natureza e regidas pelo coração de um quase adolescente sonhador.
E nesse mesmo meio de transporte empreendemos uma viagem para a fazenda Santa Helena, de propriedade do tio Aníbal e distante cerca de 40 km da cidade e que se transformou numa verdadeira odisseia aos meus olhos e sentimentos de criança.
Plena madrugada, ainda muito escura, iluminada apenas por estrelas que desenhavam o firmamento mais bonito do mundo: o céu da minha infância e da minha terra natal. Alegria da partida para novas emoções a serem vividas. Velocidade máxima de 5 km/h. Longa distância a ser vencida. Éramos, Edmar (agora médico) e eu, os passageiros empoleirados, literalmente, com um galo que levávamos para ser o dono do terreiro da fazenda. Meu tio e os outros primos nos acompanhavam a pé, pois desfrutávamos do privilégio de idade e estaturas menores.
O dia começava a se delinear no horizonte e aos poucos apagava as sombras que restaram da noite e um bom pedaço de estrada havia ficado para trás. Nós, os passageiros, fingíamos dormir e curtíamos o canto daquela ave que anunciava o alvorecer, cumprindo o desígnio que Deus lhe impôs. Foi quando na travessia de um córrego meu tio pediu que descêssemos do carro, pois o perigo era iminente. Os barrancos do rio eram mais altos e maiores que a vontade de não molharmos os pés naquelas águas resfriadas pelo orvalho do amanhecer. Enfim, cedemos às ponderações apresentadas. Foi o tempo exato dos bois entrarem na água e uma das rodas do carro atingindo uma das ribanceiras enquanto a outro permanecia no leito do rio, foi o suficiente para provocar o capotamento do carro sobre toda carga que ficou submersa e, exatamente no momento que o galo iniciava mais uma partitura que foi interrompida, calando para sempre o canto e a vida daquele galináceo, que a partir daquele momento, tornou-se nosso ex-companheiro de viagem e da vida terrena. Fomos salvos pelo bom senso dos mais velhos. E a viagem e a vida continuaram e continuam, também, provando que prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
“Quem tem ouvidos que ouça, quem tem olhos que veja!”
JOSÉ CÂNDIDO PÓVOA
É poeta, escritor e advogado; membro-fundador da Academia de Letras de Dianópolis.
candido.povoa23@gmail.com