Foi em Goiânia, numa sexta-feira e por acaso, visitando uma galeria de artes deparei-me com uma tela que à primeira vista causou-me a impressão que retratava a fazenda que foi de propriedade do meu pai, localizada no município de Dianópolis, Tocantins, minha terra natal, onde passei muitos e inesquecíveis dias da minha infância e adolescência.
O artista cumpria uma das finalidades da sua existência: provocar e resgatar os sentimentos abstratos, procurando trazê-los para o mundo real.
Paixão de imediato por aquela obra, afinal ela resgatava imagens que só eu tenho guardada na memória e que me é transmitida sempre ao coração. Esforço não faltou para adquiri-la. Em vão. Já havia sido vendida para outra pessoa e aguardava tão somente o pagamento, que seria feito no sábado, e levada por alguém que talvez tenha observado naquela pintura algo semelhante ao que vi e senti. (Existem pessoas que sentem o mesmo que sentimos. É raro, mas existem. Até no amor é assim.)
Meu coração insistia em cobrar-me aquela tela. No domingo, resolvi passar pelo mesmo local, apenas por desencargo de consciência e apaziguar a alma, que no burburinho da cidade grande, sente saudades da infância feliz, vivida numa pequena cidade do interior e sendo muitos daqueles dias na fazenda Prazeres, a mesma que a meu ver estava reproduzida no colorido das tintas. Surpresa imensa quando constatei que lá ainda estava a tela. Tive dúvida tratar-se do vidro embaçado ou meu sentido da visão que estava apurado demais (quando as emoções comandam os olhos, às vezes vemos imagens que não existem. Tal qual uma miragem.)
Desembaçando os olhos e o vidro da vitrine, constatei que era verdade: lá estava a tela inteirinha, provocando e resgatando meus sentimentos. Daí à sua aquisição, foi questão de horas. Na segunda-feira, minha esposa e meus filhos, sabedores de meu interesse, a trouxeram para minha casa e ofereceram-na a mim como presente de aniversário, que estava próximo.
E hoje, já bem distante da minha infância e da minha terra natal, passo momentos olhando a tela e recriando sentimentos.
Ali passo muito tempo mergulhando em seus riachos ou colhendo, no cerrado, cajuzinhos, buritis e puçás; marmelos, muricis, barus e xixás; veludos e jatobás; cocos xodó, cagaitas, mangabas, canapus, mutambas e ingás e frutas outras só encontradas por lá. Aprecio naquela pintura, sob o colorido das tintas e invisíveis aos olhos puramente humanos, a Serra Geral com seus amanheceres e entardeceres inigualáveis; sinto o perfume trazido nos ventos das madrugadas soprados pelos gerais da Bahia; vejo a cristalina e apaixonante Lagoa Bonita; o São Sebastião com seu Rio Palmeiras de águas límpidas; revejo a Cachoeira da Luz; o Córrego Getúlio com a Biquinha que refrescava nossas manhãs e tardes quentes; sinto o acalento e o cheiro de terra molhada pelas primeiras chuvas engravidada; vejo meu quintal carregado de vida e de passarinhos acenando para a alma de um ainda menino/adolescente; vejo a lua cheia clareando as areias brancas que me levavam àquele lugar inesquecível; revejo as belas manhãs de abril, as incomparáveis tardes de maio e noites de junho; nas noites mais frias, aqueço-me ao pé do velho fogão; enfim, retorno ao dia 31 de dezembro de 1967, quando deixei minha terra de sonhos para enfrentar o mundo real de pessoas adultas e cheias de disputas e interesses pessoais.
Afinal tenho ao meu dispor os dias de minha infância vividos na fazenda do meu pai e retratados numa tela produzida por um artista plástico que nunca esteve por lá, mas que captou e transmitiu para minha memória os lugares onde aprendi que a felicidade está dentro de cada um de nós e podemos levá-la por toda vida e por onde andarmos.
Ele, o artista, cumpriu o seu papel e eu tento cumprir o meu: não me afastar dos valores aprendidos no seio da família e com os amigos verdadeiros. A tela, por sua vez, cumpre o seu: diuturnamente oferece-me tudo que quero em relação à minha infância e adolescência.
E vou dependurando no mural da memória os fatos, as fotos e sonhos de tudo que vivi naqueles lugares. Essa é a regra de quase todos que acreditam nos sonhos e no amanhã. Sou desses. Sou assim. Nasci dessa forma e quero continuar desse jeito.
“Quem tem ouvidos que ouça, quem tem olhos que veja!”
JOSÉ CÂNDIDO PÓVOA
É poeta, escritor e advogado; membro-fundador da Academia de Letras de Dianópolis.
candido.povoa23@gmail.com