A Lei nº 14.757, de 2023, trouxe consigo importantes reformas à Lei de Regularização Fundiária de Terras Devolutas (Lei nº 11.952/2009) e à Lei de Reforma Agrária (Lei nº 8.629/1993).
Mudanças Trazidas pela Lei
A referida Lei visava atualizar disposições constantes nas normas acima citadas e na Lei nº 13.465/2017.
Foi a Lei nº 14.757/2023, por exemplo, que alterou o critério para a regularização de ocupantes irregulares em projetos de assentamento, de um marco temporal fixo para o prazo razoável de um ano, conforme já referimos em nosso outro artigo, intitulado “Cenário da Reforma Agrária em 2024: Prateleira de Terras e PNOT”.
A norma reformadora continha seis artigos, dos quais o Art. 2 foi vetado expressamente pelo Poder Executivo Federal, apoiado pela opinião dúbia do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, o que gerou grande polêmica à época. Mas o que dizia esse artigo de tão ofensivo e ameaçador à sociedade? Bem, vejamos o texto que foi vetado:
Art. 2º A Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 15-A e 16-A:
‘Art. 15-A. Caso o contrato emitido antes de 25 de junho de 2009 esteja pendente de pagamento, os beneficiários originários, herdeiros ou terceiros adquirentes de boa-fé que ocupem e explorem o imóvel poderão adimplir integralmente o saldo devedor e receber a quitação do contrato, hipótese em que será aplicável a extinção das cláusulas resolutivas, observado o disposto no art. 16-A desta Lei.
§ 1º O terceiro de boa-fé proprietário de outros imóveis rurais poderá ter seu requerimento atendido, desde que o somatório das áreas de sua propriedade com o imóvel em estado de inadimplência não exceda a 15 (quinze) módulos fiscais.
§ 2º Ato do Poder Executivo disporá sobre as condições financeiras e os prazos para a renegociação, observados os limites estabelecidos nesta Lei.’
‘Art. 16-A. Ficam extintas as cláusulas resolutivas constantes dos títulos emitidos até 25 de junho de 2009 que atendam às seguintes condições:
I - comprovação, pelo proprietário ou possuidor, do adimplemento das condições financeiras, observado o previsto no art. 15-A desta Lei;
II - área total por proprietário ou possuidor não superior a 15 (quinze) módulos fiscais;
III - comprovação de inscrição do imóvel rural no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
§ 1º É vedada a concessão dos benefícios previstos nesta Lei quando houver a ocorrência de exploração de mão de obra em condição análoga à de escravo na área a ser regularizada.
§ 2º A extinção das cláusulas resolutivas não afasta a responsabilidade por infrações ambientais, trabalhistas e tributárias.
§ 3º A liberação dos títulos de domínio sem a observância do disposto nesta Lei implica responsabilidade civil, administrativa e penal dos responsáveis.
Ambos esses artigos seriam acrescidos à Lei nº 11.952/2009, e trariam inúmeros benefícios a diversos proprietários rurais no Brasil.
A esse respeito, é de nosso especial interesse o Art. 16A, que extinguiria as cláusulas resolutivas constantes dos títulos emitidos até 25 de junho de 2009, desde que o título tivesse seu valor quitado pela parte, e que a área não fosse superior a quinze módulos fiscais, apresentasse cadastro regular no CAR e o proprietário não tivesse explorado mão de obra em condição análoga à escravidão.
As razões indicadas para o veto à época estavam imbuídas de uma motivação destacadamente política e careciam de qualquer fundamento jurídico razoável; além dos desmandos do STF, o Congresso Nacional não ficou satisfeito com a postura do governo federal e, trabalhando dentro da legalidade e do rito constitucional, deu a volta por cima.
Acontece que a liberação de cláusulas resolutivas, em especial dos títulos oriundos de regularização fundiária, é uma pedra no sapato do povo brasileiro, atravancando o progresso de diversas regiões no centro-oeste e norte do país há anos. Mas antes, vamos nos aprofundar um pouco mais sobre essa questão.
INCRA e Regularização Fundiária
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) detém a competência para instrumentalizar a regularização fundiária sobre terras devolutas federais, em especial as situadas na chamada “Amazônia Legal”, e as demais já arrecadadas pelo órgão. Esses processos se desenvolvem através de um requerimento de titulação e fazem parte dessa história as diversas plataformas de regularização fundiária lançadas pelo INCRA. Dentre as mais recentes, podemos citar: “Terra Legal”, “SIGEF Titulação” e, recentemente, a “Plataforma de Governança Territorial-PGT”, que é a única que continua ativa e operante. A regularização fundiária, popularmente conhecida como titulação, representa o sonho de diversos brasileiros em conseguir transformar em propriedade de fato as ocupações exercidas sobre faixas de terras devolutas, podendo assim gozar de segurança jurídica e estabilidade para trabalhar o imóvel e torná-lo produtivo. Mas nada é tão simples assim, não é mesmo?
Títulos de Domínio e Cláusulas Resolutivas
Além de ser um procedimento extremamente burocrático e demandar o preenchimento de diversas exigências, a titulação culmina com a outorga ao particular (que deve ser pessoa física) de um documento, hoje chamado de Título de Domínio (TD), que substituiu a antiga dicotomia entre Títulos Provisórios e Definitivos.
O TD transfere ao beneficiário a propriedade resolúvel do bem, vinculada a diversas condições rígidas que devem ser cumpridas em prazos que variam de 3 (três) a 20 (vinte) anos, dentro dos quais a parte não poderá, em hipótese alguma, vender ou ceder a exploração do imóvel. Dentre essas condições, destacamos o pagamento pelo título recebido. Uma vez cumprido o prazo e as condições, a parte deve solicitar sua liberação, e só então a propriedade será plena. Mas, se descumpridas as condições, o TD seria revogado, e a área voltaria ao acervo de terras devolutas federais.
Se a titulação não é simples, a liberação dessas cláusulas resolutivas é ainda mais complexa. Muitos beneficiários sequer tinham ideia de que estavam obrigados a pagar algum valor ao INCRA; outros sequer sabiam do que se tratavam essas condições. E se hoje o acesso à informação é simplificado e mesmo assim falamos em vulnerabilidade do cidadão, imaginem nas décadas de 70, 80 e 90? Estamos falando de pessoas humildes que, algumas vezes, sequer sabiam ler ou escrever. É em grande parte para benefício dessas pessoas que se buscou a referida mudança legal.
Isso porque diversos desses imóveis estão pendentes dessa liberação de cláusulas resolutivas, para que possam ser inventariados, partilhados ou até mesmo vendidos. E da forma posta hoje, a meta do governo federal parece ser retomar essas terras e dar-lhes uma destinação diferente. O que, sob diversos aspectos, é um desserviço social.
No dia 09/05/2024, a maior parte dos Vetos Presidenciais foram derrubados pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta, e dentre eles estava o que impedia a entrada em vigor do Art. 16A, e com isso ressurgiu a esperança de que seja feita justiça a milhares de brasileiros que sacrificaram suas vidas para transformar chão inculto nos rincões do interior do Brasil em terra produtiva.
Considerações Finais
Esperamos sinceramente que a iniciativa do Congresso Nacional não passe em branco, e que o poder executivo entenda a mensagem; e ainda mais, que o Presidente não se omita e dê, por meio de decreto, os meios devidos para a efetividade da norma. Daí a saber como isso vai funcionar perante o INCRA, já é outra história…
Não basta estar na Lei; é necessário que o poder público se esforce para fazer cumprir a norma, assegurando ao cidadão o livre exercício de seus direitos, fora da ditadura velada da burocracia estatal.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; membro da Comissão Nacional de Direito Agrário e Agronegócio da OAB; membro Consultor da Comissão Estadual de Direito Agrário e Agronegócio da OAB/TO (2020-2021); membro da Comissão Nacional de Direito Ambiental da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2021-2022); membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2020-2021); especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
Contato Acadêmico: costaneto.jus.adv@gmail.com