A inclusão escolar é uma pauta amplamente defendida em discursos institucionais, projetos pedagógicos e documentos oficiais. No entanto, o abismo entre o que é previsto na legislação e o que é vivenciado nas escolas públicas brasileiras permanece gritante. Professores de diferentes regiões do país enfrentam, diariamente, o desafio de atender alunos com deficiência sem o suporte necessário por parte do Estado. Costa, Schmidt e Camargo (2023) demonstram que a elaboração do PEI, quando realizada de forma colaborativa entre professores, pais e equipe multiprofissional, promove melhorias significativas no trabalho coletivo da equipe escolar, refletindo positivamente na inclusão de alunos com Transtorno do Espectro Autista.
Segundo os autores, “a construção do PEI, de modo articulado entre os profissionais envolvidos no processo pedagógico, contribui para a coerência nas intervenções, respeitando as singularidades do estudante e potencializando a efetivação da inclusão escolar” (COSTA; SCHMIDT; CAMARGO, 2023, p. 12). No Tocantins, essa realidade não é diferente. Esta carta aberta visa denunciar e tornar pública a negligência com que o Estado trata a inclusão educacional, sobretudo no que diz respeito à ausência de recursos didáticos, apoio técnico e formação continuada de qualidade para os profissionais da educação.
O Brasil possui um arcabouço jurídico robusto que garante o direito à educação inclusiva — como a Constituição Federal de 1988 (art. 206, inciso VII), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), resoluções do Conselho Nacional de Educação (Resolução CNE/CEB nº 4/2009) e portarias ministeriais voltadas à educação especial —, a realidade das escolas demonstra o distanciamento entre a norma e sua efetivação. As garantias legais existem, mas não se materializam em políticas públicas eficazes, tampouco em materiais didáticos, equipe de apoio ou suporte técnico necessário.
Diariamente, professores recebem estudantes com deficiência — como síndrome de Down, TDAH, dislexia, transtorno do espectro autista (TEA), entre outras condições na sala — e são orientados a elaborar planos adaptados, desenvolver materiais personalizados e assegurar o aprendizado desses educandos. Contudo, não recebem o mínimo necessário: não há recursos didáticos específicos, nem equipe técnica, nem formação continuada de qualidade e tampouco estrutura básica. Enquanto os documentos oficiais proclamam equidade e inclusão, a prática revela sobrecarga, abandono e dissimulação pedagógica.
O Estado do Tocantins, ao exigir adaptações sem oferecer suporte, desrespeita a Constituição Federal (Art. 206, VII), a LDB (Lei n.º 9.394/1996, arts. 58, 59 e 67), o Plano Nacional de Educação (Lei n.º 13.005/2014, meta 4), o Decreto n.º 7.611/2011, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 13.146/2015, art. 27) e a própria Lei Estadual n.º 4.220/2023, que institui o Programa de Fortalecimento da Escola (PROFE), o qual prevê o fornecimento de recursos pedagógicos especializados — medida que, na prática, não se concretiza nas salas de aula.
A Resolução CNE/CEB nº 4/2009 determina que a elaboração do Plano de Ensino Individualizado (PEI) deve ser realizado de forma colaborativa, envolvendo o professor regente, o Atendimento Educacional Especializado (AEE), a equipe pedagógica e, sempre que possível, a família. Essa diretriz é reforçada pelo Art. 164 do Regimento Escolar da Rede Estadual do Tocantins (2024), o qual orienta que a avaliação e o planejamento para estudantes com deficiência devem considerar os aspectos biopsicossociais e respeitar suas especificidades.
A Instrução Normativa nº 09/2025, publicada pela Secretaria de Estado da Educação do Tocantins, reforça que o PEI deve ser fruto de uma construção coletiva e articulada, envolvendo o professor regente, o professor do AEE, a equipe pedagógica e, sempre que possível, a família. Essa diretriz não é facultativa, mas obrigatória, conforme previsto no Art. 7º, inciso II da referida normativa. O documento reconhece que a qualidade do atendimento à pessoa com deficiência depende da corresponsabilidade institucional, da escuta qualificada e da colaboração entre os profissionais da escola.
No entanto, o que se verifica na prática cotidiana de muitas unidades escolares da rede estadual é a completa inversão dessa diretriz: o professor regente é forçado a elaborar o PEI de forma isolada, sem reuniões de planejamento, sem apoio técnico e sob ameaças veladas por parte da gestão escolar. Tal prática fere frontalmente o disposto na IN nº 09/2025, impondo ao docente uma sobrecarga que compromete tanto sua saúde quanto a efetividade do processo de inclusão escolar.
Essa negligência abre espaço para um agravante ainda mais severo: o assédio moral institucional. Muitos gestores, em vez de promoverem apoio técnico e articulação coletiva, optam por ameaçar os professores com notificações e processos administrativos caso não cumpram, de maneira isolada, funções que extrapolam suas atribuições legais. Essa prática, além de antiética, viola os princípios constitucionais da dignidade humana (Art. 1º, III da CF), da valorização do magistério (Art. 206, V e VII da CF), bem como o Regimento Escolar da Rede Estadual do Tocantins (Art. 118), o qual preconiza a gestão democrática, o respeito e a cooperação entre os profissionais da educação.
O que se observa hoje é uma falsa ideia de inclusão, na qual a responsabilidade é empurrada ao professor, enquanto o Estado se omite de garantir os meios necessários para o acesso, a permanência e o sucesso escolar dos estudantes público-alvo da educação especial.
Os docentes não estão pedindo favores, exigem apenas o cumprimento da legislação, o respeito à profissão docente e a garantia de dignidade aos nossos alunos. Inclusão sem estrutura não é inclusão. É omissão institucional.
Como já alertava Dermeval Saviani, “a precariedade dos meios materiais e das condições de trabalho do professor constitui um obstáculo que compromete o próprio processo educativo” (SAVIANI, 2007, p. 115). Essa reflexão permanece atual diante de um cenário que acaba sendo permissivo pelo professor, mesmo munido de boa vontade e compromisso ético, é lançado à tarefa de responder por um projeto de inclusão que o Estado se recusa a sustentar. O resultado é a sobrecarga emocional, física e intelectual de uma categoria que tenta suprir, com o próprio corpo e tempo, o vazio da omissão institucional.
GLEYTON FERREIRA
É docente da Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins, com mais de 15 anos de experiência na Educação Básica. Graduado em Ciências Biológicas, especialista em Saúde Pública e Gestão Ambiental, mestre em Educação pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).
REFERÊNCIAS
COSTA, D. S.; SCHMIDT, C.; CAMARGO, S. P. H. Plano Educacional Individualizado: implementação e influência no trabalho colaborativo para a inclusão de alunos com autismo. Revista Brasileira de Educação, v. 28, e280098, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782023280098. Acesso em: 20/05/2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 1996.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Diário Oficial da União, Brasília, 2015.
BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE. Diário Oficial da União, Brasília, 2014.
BRASIL. Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional especializado. Diário Oficial da União, Brasília, 2011.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº 4, de 2 de outubro de 2009. Institui diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na educação básica, modalidade educação especial.
TOCANTINS. Secretaria de Estado da Educação. Regimento Escolar da Rede Estadual de Ensino. Palmas: SEDUC, 2024.
TOCANTINS. Lei Estadual nº 4.220, de 20 de julho de 2023. Institui o Programa de Fortalecimento da Escola – PROFE.
TOCANTINS. Secretaria de Estado da Educação. Instrução Normativa nº 09, de 20 de fevereiro de 2025. Estabelece critérios e orienta quanto aos procedimentos para o Atendimento Educacional Especializado – AEE, dos estudantes da modalidade de Educação Especial da Rede Estadual de Ensino do Estado do Tocantins. Diário Oficial do Estado do Tocantins, n. 6.764, Palmas, 24 fev. 2025.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 14. ed. São Paulo: Autores Associados, 2007.