O governador Wanderlei Barbosa (Republicanos), a primeira-dama Karynne Sotero, o ex-marido dela Paulo César Lustosa, o PC, e dez deputados estaduais estão centro da fase da Operação Fames-19 deflagrada nesta quarta-feira, 3. O suposto um esquema de desvio de recursos destinados a cestas básicas envolviam contratos firmados com secretarias governamentais e institutos de interesse público. No inquérito, é apurada a possível prática dos crimes de frustração ao caráter competitivo de licitação, peculato, corrupção passiva, lavagem de capitais e formação de organização criminosa.
Os supostos crimes seriam praticados no âmbito da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Tocantins (Setas) e em outras entidades governamentais e institutos de interesse público, de acordo com a Polícia Federal, “com a ciência e aquiescência do então vice-governador e hoje governador do Estado”, Wanderlei Barbosa, agora afastado do cargo.
ESQUEMA SISTEMÁTICO
Durante o governo Mauro Carlesse, a Superintendência de Polícia Federal no Tocantins recebeu informações de que haveria Setas “um esquema sistemático de desvio de recursos públicos empregados na compra de cestas básicas para o enfrentamento das consequências da pandemia de Covid-19”. De acordo com os investigadores, “por conta de arranjos político-partidários”, a pasta havia sido “politicamente atribuída ao então vice-governador”, Wanderlei.
Ainda de acordo com a PF, entre 2020 e 2021, o que se observou foi que a maior parte da verba destinada ao enfrentamento das consequências da pandemia de Covid-19 no Estado foi direcionada para a Setas. “Contando tais destinações com diversas fontes oriundas, inclusive, de emendas parlamentares estaduais, supostamente destinadas à aquisição de cestas básicas”, afirma o inquérito.
ENTREGA SÓ PARTE
Segundo as apurações conduzidas pela PF, “o esquema consistiu na contratação de um grupo de empresas previamente selecionadas, muitas delas constituídas há pouquíssimo tempo, ou com objeto social distinto do fornecimento de alimentos, as quais, doravante, receberiam a totalidade do valor contratado, sempre em somas de grande vulto, entregando, em contrapartida, apenas parte do quantitativo estipulado, tendo havido a inexecução parcial ou até mesmo integral dos contratos de fornecimento”.
A PF afirma que “parte dos recursos ilicitamente auferidos pelo governador foram canalizados para a Pousada Pedra Canga, empreendimento de luxo em construção na Serra de Taquaruçu, formalmente em nome de Rérison Antônio Castro Leite”, filho de Wanderlei e superintendente do Sebrae Tocantins.
De acordo com a decisão do ministro relator da Fames-19, Mauro Campbell, do STJ, a primeira fase da operação deflagrada em 21 de agosto do ano passado, levou a PF a “reunir novos elementos de convicção que, não apenas corroboraram as suspeitas anteriormente firmadas, como também trouxeram novos elementos, a indicar a contemporaneidade e a atualidade do esquema sistemático de desvio de recursos públicos, lavagem de capitais e de formação de organização criminosa, instaurado na atual gestão de Wanderlei Barbosa Castro”. ”Tais elementos em cotejo com a expressiva quantidade de numerário em espécie apreendida com o governador e com auxiliares próximos, em 21 de agosto de 2024, motivaram o atual pedido de decretação de medidas cautelares diversas da prisão”, afirma Campbell na decisão desta quarta-feira.
NEGOCIADOR DE PROPINA
Dentre os elementos obtidos em agosto do ano passado, o ministro disse que foi possível extrair vários documentos e diálogos firmados por Paulo César Lustosa Limeira, o PC, ex-marido de Karynne. De acordo com a PF, PC, durante o governo Wanderlei, “atuou como uma espécie de intermediário na execução do esquema delitivo de desvio de recursos públicos por meio de contratos de fornecimento de cestas básicas, com amplo acesso à cúpula do Poder Executivo Estadual Tocantinense”. Além ter recebido “valores de grande vulto das empresas”, o ex-marido de Karynne, “com o claro intuito de impedir o conhecimento da destinação do dinheiro”, ainda “realizou saques da ordem de 665.015,63 havendo indícios de seu envolvimento em atos de lavagem que se seguiram aos supostos desvios”.
Segundo a PF, da análise aprofundada dos diálogos encontrados no celular de PC foi possível constatar que o ex-marido de Karynne “possuía como principal atividade laboral a negociação de propina em contratos” no governo Wanderlei e nas prefeituras do Estado, “tendo, inclusive, mencionado a seu irmão, de nome Wilton Rosa Pires, que, desde a transição dos governos de Mauro Carlesse para o governo de Wanderlei Barbosa Castro, tais esquemas de corrupção já estavam sendo estruturados”.
Segundo o inquérito, “em diversos diálogos é possível observar nítida alusão de terceiros ao recebimento sistemático de propina por parte do governador Wanderlei Barbosa Castro, sempre em numerário em espécie, reforçando a convicção judicial acerca da efetiva e atual existência de uma organização voltada para a dissipação e apropriação de recursos públicos no governo do Estado”.
CABA GULOSO
Em conversa com seu irmão Wilton Rosa Pires, PC fala sobre a prorrogação do Estado de Calamidade Pública no Tocantins, por ocasião da pandemia de Covid-19, e diz que o Wanderlei estaria ávido pelo recebimento de dinheiro em espécie. “Caba tá guloso, rsrsrs”, afirma a Wilton, conforme reprodução textual do inquérito.
Pelos diálogos descobertos, a PF concluiu que PC ainda, “não apenas detinha pleno conhecimento do esquema delitivo, como também participava ativamente das negociatas, combinando resultados de licitações e valores pelos itens fornecidos”. Os documentos do inquérito trazem uma conversa entre o ex-marido de Karynne com um empresário no dia 19 de outubro de 2021, poucos dias antes da posse de Wanderlei, em decorrência do afastamento de Carlesse:
PC LUSTOSA: Bom dia, parceiro. Preciso de uma proposta pra Aparecida. 100 kits Porchete, esquezzer 02 máscaras (sic).
PAULÃO MARI ALIMENTOS: SÓ UMA? O KIT 02 COMPLETO?
PC LUSTOSA: como o layout. 43,00. Unidade. Tu coloca as especificações no orçamento.
PAULÃO MARI ALIMENTOS: Ok. Já as 3 propostas.
PC LUSTOSA: Manda as 3 propostas. Sim.
PAULÃO MARI ALIMENTOS: Quem ganha?
PC LUSTOSA: Portinary. Pode ser.
PAULÃO MARI ALIMENTOS: Sim. Qual a data? PC LUSTOSA: Pode ser hoje mesmo.
PAULÃO MARI ALIMENTOS: OK
MAIS DE R$ 1,35 MILHÃO
A PF concluiu ainda que o fluxo financeiro evidenciou que PC “atuava como verdadeiro parceiro ou sócio de fato na empreitada, auferindo parte considerável dos valores desviados dos cofres tocantinenses”. De acordo com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a empresa MC COMÉRCIO DE ALIMENTOS EIRELI direcionou nada menos do que R$ 521.263,81 para ele, em um total de 58 lançamentos. De acordo com a PF, PC recebeu de empresas envolvidas um total de R$ 1.359.074,12, no período entre 29/07/2020 e 25/07/2022, realizando, no mesmo período, saques da ordem de R$ 665.015,63, “com o claro escopo de impedir o rastreamento da destinação do numerário ilicitamente auferido”.
INTENSA ATUAÇÃO DE KARYNNE
A PF afirma que, após a apreensão do aparelho celular de PC, na primeira fase da operação, em 21 de agosto de 2024, foi possível identificar “a intensa atuação de Karynne Sotero, esposa do governador, no desvio de recursos públicos destinados à compra de cestas básicas para fornecimento à população carente do Estado”. “O Instituto de Desenvolvimento e Gestão Social, Esportiva e Cultura – Idegesesc estava umbilicalmente ligado à Karynne Sotero Campos desde a sua criação, havendo indícios contemporâneos da intenção de destinar emendas parlamentares para o Idegesesc com o fito de promover uma aproximação de parlamentares estaduais com o governo de Wanderlei Barbosa Castro. Posteriormente, foi constatado que o Idegesesc mudou de nome para Instituto de Desenvolvimento Educacional, Social e da Saúde (Idess)”, diz o inquérito. A primeira-dama foi presidente dessa entidade entre os períodos de 17/01/2013 a 16/10/2019.
Contudo, a PF afirma que a análise detalhada dos diálogos mantidos por PC com seus interlocutores “evidencia que Karynne Sotero, esposa do governador Wanderlei Barbosa Castro, até os dias atuais, permanece à frente do instituto”. Segundo o inquérito, em junho de 2024, para se aproximar da primeira-dama, a deputada estadual Cláudia Lelis (PV), investigada no caso, procurou PC e o irmão dele, Wilton, para se oferecer para destinar emenda parlamentar para o Idegesesc. “A despeito de possuir um instituto próprio para fins assistenciais, a deputada estadual CLAUDIA LELIS teria procurado o instituto da primeira-dama, KARYNNE SOTERO, possivelmente, com o intuito de se aproximar não apenas dela como também do núcleo político do atual governador do Estado, WANDERLEI BARBOSA CASTRO”, diz a peça judicial.
O inquérito mostra que os irmãos PC e Wilton estavam até intrigados com o fato de boa parte dos recursos da assistência social do Estado ter sido destinada a institutos ligados aos deputados estaduais. Como mostra essa conversa dos dois do 12 de junho de 2024:
WILTON IRMÃO LÍDER: Tô bem.
WILTON IRMÃO LÍDER: Tô aqui na Secretaria.
WILTON IRMÃO LÍDER: A temporada de praia está se preparando.
WILTON IRMÃO LÍDER: Muitas emendas aí para alguns institutos.
PC LUSTOSA: Moço trem tá tão feio que não sei como vai ser essa temporada.
PC LUSTOSA: Os institutos são tudo dos deputados irmão PC LUSTOSA: Andei falando com o pessoal aí
PC LUSTOSA: Todos têm um instituto
PC LUSTOSA: Como é que faz assim?
WILTON: É, mas…. mas o…. porque que o pessoal veio atrás de nós, da emenda lá da CLAUDIA? Veio atrás é de nós. Da emenda lá da CLAUDIA de 300 mil lá pra reforma lá do… do…. complexo lá do…. do idoso. É, num sei…vamos ver…
PC LUSTOSA: Ela não quer colocar no dela
PC LUSTOSA: Simples
PC LUSTOSA: Aproximação com Karynne WILTON: Hummm
PC LUSTOSA: Isso aí é armação
PC LUSTOSA: Cláudia não é boba
WILTON: ali iríamos ganhar 30 mil kkkk
PC LUSTOSA: Pois é. Já era. Passou
Para a PF, o teor do diálogo também evidencia que, pela mera intermediação, era comum que os irmãos recebessem aproximadamente 10% do valor do repasse destinado por cada deputado estadual.
O Idegesesc ainda recebeu emenda para cesta básica da então deputada estadual Valderez Castelo Branco, com um termo de cooperação com a Setas de 7/12/2021. “Não obstante, da análise dos diálogos realizados entre PAULO CESAR [PC] e seu irmão WILTON, nos dias 07/02/2022 e 08/02/2022, ou seja, durante a vigência do contrato, que havia sido prorrogado até 26/06/2022, verifica-se que o Idegesesc não produzira nenhuma cesta básica, tendo solicitado o empréstimo de cestas montadas pertencentes a outra empresa para poder ludibriar a fiscalização da Sestas e viabilizar a realização de fotos”, diz o inquérito.
Confira o diálogo:
WILTON: Então, cê já tá indo pra lá, fala pra mim que eu vou pra lá então (…) que eu tô com o carro aqui cheio de cesta eu tô doido pra botar essa cesta lá e esperar amanhã fazer a visita lá na SETAS né, fiscalização, e depois colocar novamente a cesta no carro e entregar lá pro ROSALINO, que ela é emprestada né, ele me emprestou só (…)
PC LUSTOSA: agorinha
PC LUSTOSA: passar no chaveiro
WILTON: Chegando aí
PC LUSTOSA: blz
WILTON: Ela vai atrasar um pouco o pessoal da SETAS. Me mandou aqui.
A PF mostra que no dia em 17/02/2022, ou seja, nove dias após o registro fotográfico, os irmãos PC e WILTON “demandaram uma lista com 1.500 nomes e CPFs, os quais seriam utilizados por TIAGO, muito possivelmente, TIAGO DA SILVA COSTA, então secretário executivo da SETAS, para prestar contas do recebimento fictício das cestas básicas”.
WILTON IRMÃO LÍDER: (Encaminha áudio de terceira não identificada). “Wilton, tem como você ver com o PC ou você conhece alguém que tenha uma lista de nomes…. nomes, CPFs, a gente precisa de uns mil e quinhentos nomes ainda pra completar a lista, tá? Pra fazer a prestação de contas lá das cestas que o TIAGO não tem né, e aí tá precisando desse restante. Fala com ele aí, vê aí se o PC tem alguma coisa ainda da campanha dele. É só nome e CPF”.
PC LUSTOSA: Meu Deus
PC LUSTOSA: Tenho nada, irmão, as coisas da campanha queimei tudo.
PC LUSTOSA: Roberto tá viajando.
PC LUSTOSA: Senão pedia para ele
PC LUSTOSA: Se tiver arruma
WILTON IRMÃO LIDER: Precisamos muito
PAGAMENTO ANTECIPADO
Segundo os policiais, “a cronologia e sistemática observadas nos diálogos é compatível com o modus operandi que foi empregado nos contratos para o fornecimento de cestas básicas, em que o pagamento é antecipado e a entrega e distribuição das cestas básicas ocorre em um momento posterior”.
De acordo com a PF, a situação do Idegesesc “aparenta ser mais obscura do que aquela das empresas contratadas”. “Em consulta ao site da Transparência do Tocantins, verifica-se que houve um pagamento ao Idegesesc em 12/2021, (mesmo ano e mês da celebração do Termo de Colaboração), no valor de R$ 256.000, denotando que, de fato, o acordo prosseguiu e foi efetivado”, diz.
INTENSO ENVOLVIMENTO DE KARYNNE E WANDERLEI
Mais à frente, ao reproduzir diálogos de PC, o inquérito conclui que eles evidenciam “não apenas o trânsito e a influência de PAULO CÉSAR LUSTOSA no governo do Estado, como também comprova o intenso envolvimento de KARYNNE SOTERO, primeira-dama do Estado, e de seu esposo, o governador do Tocantins, WANDERLEI BARBOSA CASTRO, na medida em que todas as contratações dependiam da boa vontade do poder executivo estadual, propiciada não apenas pela intermediação conduzida por KARYNNE, como também, pela ciência e aquiescência de WANDERLEI BARBOSA CASTRO”.
A investigação também fala da proximidade entre Wanderlei e PC. “Ainda segundo pontuado pela informação de polícia judiciária, há inúmeros diálogos contemporâneos aos eventos acima mencionados, entre WANDERLEI BARBOSA CASTRO e PAULO CÉSAR LUSTOSA LIMEIRA, todos eles apagados [foto a abaixo], o que indica a manifesta proximidade do próprio governador com o lobista, nas negociações conduzidas em seu governo”, afirma.
O que chamou a atenção dos policiais na iniciativa Wanderlei em eliminar as mensagens trocadas com PC é, na busca exploratória realizada no celular dele foram encontradas várias mensagens trocadas com distintos interlocutores, “em relação aos quais o governador não sentiu a necessidade” de apagar a conversa mantida.
AJEITAR AS COISAS
Ainda de acordo com a PF, “indícios do possível recebimento de vantagens indevidas com a ciência, aquiescência e provável participação do governador” também podem ser extraídos de conversas mantidas entre PC e seus familiares. Em conversa mantida com a própria filha, no dia 18 de março de 2024, o lobista manifesta o desejo de que Wanderlei e sua ex-esposa, Karynne Sotero, mãe da garota, “ajeitem” as coisas para ele, já que sua vida financeira estaria, naquele momento, atribulada. Confira:
PC LUSTOSA: tudo certo
FILHA: pse pai
PC LUSTOSA: Preciso arrumar minha vida, bagunçou demais
PC LUSTOSA: Se tua mãe e Wanderlei ajeitar esse negócio da licitação pra mim e tudo, ajeito as coisas e não fico devendo mais pra ninguém
Os investigadores concluíram que o “aludido diálogo, para além de indicar o envolvimento de Karynne Sotero e Wanderlei Barbosa nas negociatas conduzidas por Paulo César Lustosa, evidenciam que a filha do operador com a primeira-dama detinha pleno conhecimento das operações ilícitas feitas por seus pais, com provável desvio e apropriação de recursos públicos”.
