Que a desigualdade social é a grande chaga do Brasil, isso é decantado desde sempre, mas “resolvemos” o problema bem ao nosso estilo: fingimos que ele não existe. Normalizamos as profundas injustiças sociais, ao invés de combatê-las, e convivemos sem qualquer dor na alma. Por isso, a madame sai com a BMW de sua mansão em um grande centro e nem mais olha para o lado, onde está instalada uma inóspita favela.
Não é mais notada pelos ilustres vizinhos. Virou parte da paisagem. A madame e seus iguais veem casebres e barracos, apenas, não pessoas que travam uma guerra diária para chegar à noite vivas e, quando possível, minimamente alimentadas. Não enxergam que 200 pessoas dividem um mesmo banheiro e que famílias com até uma dezena de membros espremidas num cômodo passam o mês com duas pedras de sabonete. Nunca mais tomei banho sem olhar diferente para o sabonete depois de ter essa dura realidade esfregada em minha cara numa matéria de TV.
A abismal desigualdade social brasileira foi desnudada pela pandemia do novo coronavírus, tirada do modo “normal” com que aprendemos conviver com as mais terríveis disparidades. O cidadão com o mínimo de consciência e alma não é capaz de aceitar continuar coexistindo com extremos tão díspares, em que muitos só pensam nos novos modelos de carro e celular, no jantar à luz de velas e vinhos importados, enquanto, para outros, comprar um sabonete é quase como que uma conquista patrimonial.
A redução das desigualdades sociais é de interesse de todos os estratos sociais. Não beneficia apenas o elo mais frágil da sociedade e não prejudica os privilegiados e bem-nascidos. A Nação ganha. Esse desequilíbrio da distribuição de renda tem um custo econômico e social absurdo para toda a população.
Os gastos com segurança numa sociedade desigual consomem grande parte da riqueza produzida. Pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostraram que nossas perdas com a violência chegam anualmente a 6% do PIB, cerca R$ 373 bilhões em valores de 2016. Além do custo financeiro, um país socialmente injusto reduz a qualidade de vida de todas as famílias, tira a paz e limita nosso privilégio nascer num pedaço de terra tão abençoado.
Com o fosso enorme que separa os Brasis da riqueza e da miséria extremas escancarado pela pandemia do novo coronavírus, o debate sobre como superar toda essa injustiça, que hoje cria gigantescos obstáculos para vencermos a Covid-19, é mais que urgente. O País não tem mais como adiar a discussão e incluir essas distorções sociais no “novo normal” em que entraremos após a crise sanitária.
Não é normal que uns tenham tanto e que outros não tenham nada. Não é normal um tomar banho sem sequer se lembrar que o sabonete tem um preço e outro economizar para que dure um mês inteiro. Não é normal que seres humanos não tenham o que comer. Me recuso terminantemente a normalizar tantas mazelas que nos tornam torturadores de milhões de homens, mulheres e crianças num país que produz tanta riqueza.
Se tem algo que esta pandemia colocou num pedestal, como prioridade zero da sociedade brasileira, é a implantação de uma renda mínima universal. É inadiável e precisa ser o compromisso moral maior de cada brasileiro minimamente civilizado. Teremos que ceder um pouco para que muitos tenham o básico e todos vivamos numa sociedade melhor e pacificada.
Como fazer? Já há várias propostas em debate, mas essa é uma construção que deve envolver todos os segmentos. Só não podemos mais é adiar, fingir que esse mal que escorre hemorragicamente por todo o País não está culturalmente enraizado. Não só existe, como não cicatriza. É preciso tratá-lo.
CT, Palmas, 25 de junho de 2020.