Cara República brasileira,
A senhora começou muito mal há 135 anos: por um golpe militar e sem o povo. O pior, como bem ressaltou Laurentino Gomes, no instigante “1889”, “na prática, a República brasileira, para se viabilizar, teve que vestir a máscara da Monarquia”. E é justamente sobre essa sua dupla personalidade — formada por representantes populares, mas com ares monárquicos — que quero lhe dirigir, após puxar para cá mais uma oportuna constatação de Laurentino sobre a transição do antigo sistema para o atual. Segundo o renomado autor também de “1808”, “1822” e da trilogia “Escravidão”, o “toma lá dá cá, inaugurado por dom João na chegada da corte ao Brasil mediante a troca de privilégios nos negócios públicos por apoio ao governo, manteve-se inabalável”.
Sua estreia neste país de poucos privilegiados, minha senhora, foi ignorando o povo e sendo ignorado por ele. Não é à toa que grande parte dos brasileiros sequer sabe o que é comemorado neste 15 de novembro. Volto a Laurentino: “A República brasileira nasceu descolada das ruas. ‘O povo assistiu àquilo [o golpe de 15 de novembro de 1889] bestializado’, segundo uma famosa frase do jornalista Aristides Lobo, testemunha dos acontecimentos”.
A história da senhora nesses 135 anos, cara República, é formada por vários golpes, numa briga infame de poder entre os oligarcas, sempre recusando ceder o mínimo espaço à população. “O sangue que deixou de correr em 1889 verteu em profusão nos dez anos seguintes, resultado do choque entre as expectativas e a realidade do novo regime”, anotou o citado autor. “E assim permaneceria pelos cem anos seguintes, marcados por golpes e rupturas entremeados por breves e instáveis períodos de democracia”, reforçou já ao final de “1889”.
Com o povo de fora e a escravidão permanecendo em vigor até agora — só com novos contornos, como emerge, por exemplo, desse debate da escala 6×1 –, nossa classe dominante de ricos, políticos poderosos e as mais altas autoridades do estamento burocrático ocupou os mesmos lugares que eram de barões e viscondes na monarquia. Regalias iguais. Isso fica mais visível no tratamento e benesses que garantimos aos nossos mandatários. Deveriam ter o respeito e a dimensão entre o povo do que efetivamente são, servidores públicos, como um auxiliar administrativo, um policial, um analista técnico, um auditor, um enfermeiro. Mas os sacralizamos, os enxergamos feitos popstars, nos curvamos à sua frente à maneira que se faziam com nobres.
Nossa população, cara República, verdadeiramente vai mostrar maturidade cidadã quando retirar todos os privilégios dessa gente e dar-lhes a mesma consideração respeitosa que tem com todo o funcionalismo. Nada mais de apartamento funcional, carro oficial permanente, auxílio moradia, dezenas de auxiliares e regalias sem fim. É nessa altura que faremos as pazes com a senhora, que, então, não tenho dúvida, poderá nos guiar pelos trilhos de um verdadeiro desenvolvimento humano e civilizacional.
Olhando por esse prisma, por fim, preciso reconhecer, por justiça, que a culpa do nosso desencontro não é sua, mas também outro mal-feito de nossas elites, que nos afastaram e se recusaram a incorporar-nos à senhora para justamente não ter que dividir as vantagens que hoje retêm só para elas.
Saudações democráticas,
CT