Simpatizante da monarquia, o escritor Machado de Assis debochou da República no romance Esaú e Jacó. O personagem Custódio encomendou uma placa nova para seu comércio, que se chamava Confeitaria do Império. Como se comentava que o imperador Dom Pedro II poderia ser derrubado do trono, e temendo a reação da clientela republicana, Custódio enviou mensagem ao pintor para que interrompesse os trabalhos no “d”, até que tudo se definisse.
Era tarde. O homem já tinha concluído a placa, e o comerciante teve que encomendar outra, que inicialmente seria nomeada de Confeitaria da República. Como não acreditava muito na solidez de toda aquela movimentação política, pensou em Confeitaria do Governo. Contudo, havia um problema: e os clientes da oposição? Assim, preferiu uma saída mais politicamente correta e o comércio passou a se chamar Confeitaria do Custódio.
[bs-quote quote=”Na perspectiva da ‘Res publica’, ou seja, a ‘coisa pública’, temos muito a avançar para a consolidação de uma República que estenda a todo o País a riqueza produzida por todos. Esse exemplo das emendas parlamentares é emblemático nesse sentido. Mas as operações diárias Polícia Federal mostram como a classe dirigente brasileira, em todas as instâncias, administra o público como se privado fosse” style=”default” align=”right” author_name=”CLEBER TOLEDO” author_job=”É jornalista e editor do CT” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/02/CTAdemir60.jpg”][/bs-quote]
A história machadiana, de certa forma, é uma metáfora da instabilidade que a República brasileira vive até hoje. Apesar de suas fragilidades, não se questiona a implantação dessa forma de governo, que acabou sendo a escolha da maioria da população no plebiscito de 1993. O que está em xeque é a nossa capacidade de consolidá-la.
Tenho a maior admiração pela figura de Dom Pedro II, e quanto mais leio sobre ele, mais essa simpatia aumenta. Um imperador de cabeça aberta à modernidade, à ciência, às diversidades de crença, e o escritor Laurentino Gomes chega a insinuar em seu magnifico “1889” que Dom Pedro era simpatizante da República, à qual preferiu não fazer nenhuma resistência quando deposto por um movimento sem povo, de classe média, como frisa o autor do livro — militares e intelectuais positivistas.
Apesar dessa manifesta admiração por nosso imperador, não consigo imaginar uma monarquia no caos moral que dominou a política brasileira, sobretudo a partir da Nova República. Como seria o Brasil hoje se tivéssemos optado por uma monarquia no plebiscito realizado há 25 anos? Não dá para saber, a não ser emitir meros achismos.
A República conquistou uma estabilidade como forma de governo considerada ideal pelos brasileiros, mas ainda é uma construção instável. É interessante que não se questiona o republicanismo. Há o iletrados que defenestram a própria democracia e clamam pela volta da ditadura militar. Mas não se vê um questionamento à República.
Talvez porque os brasileiros, que conhecem bem sua classe política, ficam imaginando como seriam as regalias numa monarquia, se em pleno sistema republicano já usam e abusam delas.
Do latim (Res publica, ou seja, “coisa pública”), a República, semanticamente, já coloca as coisas no seu devido lugar. Nada deve ser pessoal, mas é o interesse público que precisa prevalecer. Os recursos não são de um monarca e sua família, mas produzidos e, portanto, de propriedade de toda a sociedade.
É uma das coisas que me irritam profundamente, por exemplo, quando um parlamentar trata as malfadadas emendas como “meu dinheiro”. Já ouvi isso da boca de vários: “Coloquei R$ 10 milhões do meu dinheiro para tal município”. Que “meu dinheiro”, cara-pálida? É recurso público, arrancado de um pobre contribuinte, que se esfola o ano todo para manter seus parasitas. Sou inimigo público número 1 das tais emendas parlamentares, em qualquer instância. E um dos maiores problemas delas, além de desvios, má utilização geral, por ser instrumento de cooptação, destinos indevidos (como shows e eventos), é justamente provocar esse descaminho conceitual: o dinheiro é da população, não de vereador, deputado ou senador.
Na perspectiva da Res publica, ou seja, a “coisa pública”, temos muito a avançar para a consolidação de uma República que estenda a todo o País a riqueza produzida por todos e também justiça social. Esse exemplo das emendas parlamentares é emblemático nesse sentido. Mas as operações diárias Polícia Federal mostram como a classe dirigente brasileira, em todas as instâncias, administra o público como se privado fosse.
Mas a população não é só vítima, é também cúmplice. Primeiro porque também lhe falta absorver o conceito máximo de “coisa pública” exaltado por essa forma de governo. Isso é comprovável pelo jeitinho que utiliza para resolver suas relações com o Poder Público, pela falta de compromisso e zelo com o bem público — como a depredação daquilo que é dele e do conjunto da cidadania —; do emprego público fácil, rentável e de pouco trabalho, e por aí vai.
Aos 129 anos, nossa República é uma senhora querida e não vivemos mais sem ela. No entanto, ainda a tratamos como típicos filhos adolescentes rebeldes. O desenvolvimento do Brasil, uma ambição que também motivou os primeiros republicanistas, passa por assimilar esse conceito semântico da Res publica, de que tudo que temos em comum e todas as riquezas que produzimos são de todos os brasileiros.
Na verdade, assimilar esse conceito é, de fato, entranhar no mais profundo de nossa alma o significado mais amplo de Nação.
Viva a República!
CT, Palmas, 15 de novembro de 2018.