É assustador o número de cidades do Tocantins que não atingiram a meta de cobertura vacinal até sexta-feira, 14: 44 dos 139 municípios, quase 32% sem cumprir com um dever de saúde pública com nossas crianças. Os governos disponibilizam as vacinas gratuitamente, mobilizam equipes técnicas, médicos, enfermeiros, tudo é divulgado amplamente pela mídia, mas há pais preferem relegar a vida de filhos a um quinto plano. É simplesmente lamentável.
Essa situação me tocou muito porque acabei de ler “Nêmesis”, na mitologia grega, a deusa da vingança e da justiça distributiva. A obra é do excepcional romancista Philip Roth, que infelizmente nos deixou no dia 22 de maio, aos 85 anos. Ele conta a história da luta da comunidade judaica de uma área chamada Weequahic, de Newark (EUA). Somos uma geração que veio depois de Albert Sabin e não vivemos o terror de uma doença que devastava como um fantasma, de crianças a adultos, entre eles, o próprio presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, vitimado pela pólio aos 39 anos. Ninguém sabia de onde nem como esse monstro destruidor chegava.
O Brasil registrou 26 mil casos de 1968 a 1989, quando conseguimos erradicar essa doença que ceifava vidas sobretudo de crianças ou as deixava com sequelas para sempre.
[bs-quote quote=”Em julho, o Ministério da Saúde emitiu alerta para a baixa vacinação contra a paralisia infantil porque 312 cidades não vacinaram nem metade das crianças menores de 1 ano em 2017. Vejam a irresponsabilidade!” style=”default” align=”right” author_name=”CLEBER TOLEDO” author_job=”É jornalista e editor do CT” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/02/CTAdemir60.jpg”][/bs-quote]
O livro de Roth nos leva de volta ao desespero dos pais de 1944, quando crianças, sadias e atléticas, dormiam com saúde plena e amanheciam com dores no pescoço, febre e ânsia de vômito. Em questão de horas estavam com membros do corpo paralisados para sempre, ou aprisionados no aterrador pulmão de aço — há casos de pessoas que passaram 60 anos “sepultados” nesse aparelho para conseguirem respirar —, ou no cemitério.
Naquela década longínqua de 1940, diz um dos persongens de Roth, “as maiores ameaças na face da Terra eram a guerra, a bomba atômica e a poliomielite”. Ninguém sabia como se pegava a doença: por aperto de mão, por comer em determinados lugares, por se esforçar muito, ou sabia-se lá o quê. No caso de Weequahic, o bairro do livro, onde dezenas de crianças foram atingidas, a pólio era mais um motivo para as perseguições aos judeus e todo tipo de preconceito, já que a comunidade estava aterrorizada. Confira esse trecho:
“Os motoristas das linhas oito e catorze dizem que só vão entrar em Weequahic se tiverem máscaras de proteção. Alguns dizem que não entram nem assim. Os carteiros não querem mais entregar a correspondência aqui. Os motoristas de caminhão que trazem coisas para as lojas, os armazéns, os postos de gasolina e tudo mais também não querem vir para cá. Os carros de fora passam com as janelas fechadas, por mais quente que esteja. Os antissemitas estão dizendo que a poliomielite se espalha aqui porque é um bairro de judeus”.
Este trecho mostram que o pânico levava a restrições das mais diversas à vida social:
“A piscina municipal está sendo fechada. A biblioteca pública e todas as suas filiais estão fechando. Os pastores estão fechando as escolas bíblicas”.
O autor compara que as vítimas da pólio nas 16 seções de Newark eram equivalentes “em impacto à contagem de mortos, feridos e desaparecidos na guerra de verdade”.
No livro, o pai de um dos meninos que morreram vítima da pólio faz um desabafo com o principal personagem do romance que resume a aflição de uma época em que não existia gotinha alguma que salvasse as crianças desse fantasma que rondava as famílias:
“Todos os amigos dele [garoto que faleceu em decorrência da pólio] estão apavorados […] Apavorados de que possam ter apanhado a doença com ele e que agora também vão ficar com pólio. Os pais deles estão histéricos. Ninguém sabe o que fazer. O que é que se pode fazer? O que é que deveríamos ter feito? Não consigo parar de pensar nisso”.
Hoje, graças a Albert Sabin e outros pesquisadores que se debruçaram até encontrar a prevenção eficaz, nós sabemos o que fazer, mas muitos pais não estão cumprindo com esse dever sagrado com seus filhos. Dessa forma, os colocam e a outros em risco não só de contraírem a pólio, mas outras doenças, como sarampo, caxumba e rubéola.
Vivemos numa época em que moléstias que achávamos que estavam totalmente erradicadas voltam a assombrar. Erro do poder público? Claro, faltam investimentos em saneamento, por exemplo. Mas quando há a vacina e não imunizamos nossas crianças, o resultado catastrófico, se houver, não é da por culpa das autoridades, mas do nosso desmazelo.
Em julho, o Ministério da Saúde emitiu alerta para a baixa vacinação contra a paralisia infantil porque 312 cidades não vacinaram nem metade das crianças menores de 1 ano em 2017. Vejam a irresponsabilidade!
Conforme matéria do G1, embora não haja casos atuais de poliomielite (o último é de 1989), a preocupação do ministério se justifica por ao menos três motivos: a circulação do vírus em 23 países nos últimos 3 anos; o surgimento de um caso da doença na Venezuela em junho; e o efeito devastador da doença no Brasil antes de sua eliminação, graças à vacina.
Quantas pessoas da área de Weequahic, de Newark, gostariam de ter tido esta oportunidade de salvar suas vidas e a de seus filhos com apenas uma suave e indolor gotinha. Quanto sofrimento teria sido evitado não na ficção poderosa de Philip Roth, mas na vida real.
A Campanha Nacional de Vacinação contra o Sarampo e a Poliomielite foi prorrogada até dia 25 para os municípios que não alcançaram a meta. Não perca esta oportunidade. Não exponha seus filhos e sua comunidade a riscos desnecessários.
CT, Palmas, 18 de setembro de 2018.