Há algumas semanas, ao tratar sobre os cuidados da introdução digital na vida infantil, fui surpreendida com um relato da seguinte cena: ao amamentar, de um lado a mãe segurava o filho e, do outro, mostrava vídeos infantis para distrair a criança. Esta, por sua vez, que mal sabia falar, com uma mão se segurava na genitora e com a outra mexia os pequenos dedos de forma intuitiva escolhendo o que queria assistir.
Na mesma semana, jovens ceifaram as vidas de diversos alunos, além das suas, em uma escola pública em Suzano/SP. O massacre, apontado como “terrorismo doméstico”, teria sido arquitetado com o auxílio de informações obtidas em ambiente virtual.
[bs-quote quote=”A maior parte das pessoas não foi preparada para a realidade virtual que já não é tão nova assim, ao menos para os nascidos após a década de 1980. A falta de conhecimento, acompanhamento e processamento das informações, refletem nos índices crescentes de crimes virtuais” style=”default” align=”right” author_name=”MILENA SANTANA DE ARAÚJO LIMA” author_job=”É delegada de Polícia Civil” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/12/MilenaLimaDennisTavares60.jpg”][/bs-quote]
Apurava-se também as interações com terceiros em suposto contexto de incentivo ao ódio e prática de crimes por meio da “Deep Web”. O termo, até então desconhecido para grande parte dos brasileiros, ganhou destaque em redes sociais, sendo indevido e pejorativamente associado ao “submundo da internet”, despertando a curiosidade e temor de muitos.
Em verdade, trata-se de camada não acessível pelos navegadores mais conhecidos, mas através de software específico, representando a parte do conteúdo não indexado da internet e não visível, ou seja, a maioria. Por oportuno, esclareça-se que nem todo conteúdo nela disponível é de caráter criminoso ou quem faz uso dela intenciona praticar um crime, existindo diversas outras formas e possibilidades de anonimato e práticas delitivas na internet “comum”.
Dias depois, em um encontro com dezenas de outras crianças, a maioria disse ter um smartphone próprio e, a cada minuto de fala, pequenas mãos se levantavam ansiosas por querer saber mais e revelar suas peripécias virtuais, desde compras online a troca de mensagens com desconhecidos ou falsos conhecidos, situações de bullying, sendo que uma delas teria dito que sabia o que era “Deep Web”.
Com efeito, não precisa mais sair do conforto e segurança do lar para fazer atividades como comprar, vender, trabalhar, estudar, se divertir, interagir com pessoas, praticar ou ser vítima de crimes. O acesso à internet vem começando cada vez mais cedo e devemos refletir se já não é hora de uma implementação efetiva da educação digital como um direito do cidadão e como parte do processo de formação estudantil.
Já se fala na quarta fase da revolução industrial ou Indústria 4.0, segundo o alemão Klaus Schwab, superando o paradigma dos avanços eletrônicos, tecnológicos, da informação e das telecomunicações e condensando os impactos dessa mudança na forma em que vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.
Todavia, a maior parte das pessoas não foi preparada para a realidade virtual que já não é tão nova assim, ao menos para os nascidos após a década de 1980. A falta de conhecimento, acompanhamento e processamento das informações, refletem nos índices crescentes de crimes virtuais, ressalvando-se que nem todos os danos praticados em ambientes virtuais são crimes, ou seja, os impactos e riscos são muito maiores e nas mais diversificadas esferas. Exemplo disso, são os relatos de depressões e até suicídios precedidos da associação de conflitos emocionais com isolamentos, falta de diálogos presenciais e imersão em ambiente virtual.
A educação, palavra derivada de outras cuja origem latina e literal encorpava a noção de “guiar para fora”, pode ser entendida como preparar para conviver com os outros. De forma genérica, podemos falar no ensino intuitivo, empírico, familiar para a vida em sociedade e no ensino como ciência, metodologia e pedagogia. Digamos então que o primeiro dura a vida inteira e o segundo a vida acadêmica, mas que necessariamente se entrelaçam com a economia, cultura e sociedade.
Por derradeiro, se eu não preciso sair de casa para interagir em sociedade, cujas relações afetivas, familiares, estudantis, culturais, econômicas, entre outras, estão fortemente impactadas pelos avanços tecnológicos, ressoa como lógica a necessidade de um processo de educação para lidar com essa nova realidade, benefícios, riscos, consequências e práticas de bom uso da internet.
Salvo melhor juízo, as formas de ensino que, acompanharam com eficiência os avanços tecnológicos podem e devem ser precedidas ou acompanhadas por uma educação digital, informática, tecnológica, virtual, independente da nomenclatura, compreendida como uma necessidade atual e direito de todos, dever do Estado e também da família na construção do saber e desenvolvimento da convivência afetiva, social e profissional.
MILENA SANTANA DE ARAÚJO LIMA
É delegada de Polícia Civil com atuação junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins e ex-titular da Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos (DRCC)
comunicacao@sindepol-to.com.br