Circulam na Câmara e Senado projetos de lei que buscam atender interesses das empresas de segurança patrimonial, sem que tenham havido audiências públicas, as quais dariam à população e organizações sociais organizadas oportunidade de participação na formatação desta política pública. Os projetos estão redigidos muito em função dos interesses das empresas de segurança privada. O caso Carrefour faz renascer esse debate. As entidades sociais querem e precisam ter o direito de debater e mudar o direcionamento desses projetos.
Em 19 de novembro de 2020 o Brasil assistiu consternado o noticiário dando conta do assassinato de João Alberto Freitas, o Beto, nas instalações do supermercado Carrefour situado no bairro Passo d’Areia, em Porto Alegre. O ato envolveu força desmedida, com tortura mediante lesões corporais sucessivas até que sobreviesse o evento morte.
A organizações sociais EDUCAFRO e Centro Santo Dias de Direitos Humanos, este ligado à Arquidiocese de São Paulo, foram as primeiras entidades a tomar conjuntamente medida judicial em decorrência do brutal homicídio.
O fundamento da ação civil pública proposta é o de que o homicídio realizado mediante tortura não decorreu de um ato isolado, mas do racismo estrutural. Essa forma assumida pelo preconceito racial não depende da pública admissão de que a ofensa moral ou física se deu em virtude da cor da pele da vítima. Ele simplesmente ocorre como reprodução automática de uma percepção histórica de que uma parte da sociedade é inferior ou perigosa apenas por ostentar uma pele escura.
O noticiário está repleto de situações em que se levanta suspeita sobre consumidores no interior de ambientes comerciais. E o ponto comum a todas as histórias é a pele negra nos suspeitos. Na Bahia, o grupo Atakarejo está agora envolvido em uma sequência de atos envolvendo tortura e assassinato de pessoas suspeitas de furto em suas dependências. Nenhuma delas tem pele clara.
Tal situação também se repete em relação à violência policial, que acomete muito mais pessoas negras que brancas.
À ação movida pela EDUCAFRO e Centro Santo Dias seguiu-se outra proposta pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Âmbitos diversos do Ministério Público iniciaram inquéritos civis para apurar as circunstâncias do ocorrido.
O esforço iniciado pelas entidades da sociedade civil foi concluído com a conquista de um acordo histórico, celebrando-se em 11 de junho deste ano um pacto que implicará na aplicação de 115 milhões de reais em medidas de combate ao racismo estrutural.
Muitas outras medidas estão previstas no acordo, como a disponibilização de recursos para projetos em comunidades quilombolas e a contratação de 30 mil negros e negras como empregados do grupo Carrefour, além de um programa de aceleração interna de carreira e a promoção do empreendedorismo negro.
Um dos pontos de destaque no acordo é que o Carrefour não poderá mais contratar empresas de vigilância que tenham como proprietárias/os ou trabalhadoras/es policiais da ativa.
Seguem alguns dos pontos definidos que envolvem desembolso direto de recursos financeiros:
(i) Concessão de bolsas de estudo e permanência para pessoas negras, prioritariamente em nível de graduação e de pós-graduação stricto e lato sensu, no valor total de R$ 68.000.000,00 (sessenta e oito milhões de reais), (…)
(ii) Concessão de bolsas de estudo para pessoas negras, prioritariamente em nível de idiomas, inovação e tecnologia, com foco na formação de jovens profissionais para o mercado de trabalho, no valor total de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), (…)
Cabe registrar que esta se trata da primeira demanda coletiva judicial na nossa história a culminar com o reconhecimento da existência do racismo estrutural e com a necessidade de que todos assumam a sua responsabilidade na missão de combatê-lo. Isso pode ser visto expressamente no acordo celebrado, que conta com o seguinte considerando, aqui tomados como exemplo:
CONSIDERANDO que o racismo estrutural é um conjunto sistêmico de práticas sociais, culturais, políticas, religiosas e históricas desenvolvidas e mantidas em uma sociedade de modo a manter e perpetuar hierarquização de um grupo social, mediante a manutenção de dominações, privilégios, legalizações, relações de poder e de submissão, que se perpetua independentemente das formas de expressão, sentimentos ou manifestações individuais de racismo, pois está arraigado na estrutura da vida política, econômica, social e jurídica, o que pode ser verificado por dados estatísticos que evidenciam a desigualdade social e econômica de determinado grupo em virtude de sua cor, raça ou etnia;
Convém reiterar que o objetivo da ação civil pública foi o de levar ao Poder Judiciário a discussão judicial acerca dos danos causados à sociedade brasileira decorrentes do ato de racismo praticado por aquela grande rede empresarial, causando grave comoção e provocando o repúdio da sociedade brasileira. A família de João Alberto foi previamente indenizada por meio de acordos extrajudiciais celebrados com o grupo Carrefour.
O caso escancara a necessidade de uma profunda revisão dos protocolos no âmbito da segurança patrimonial, com o robustecimento das atividades de capacitação por meio de uma profunda formação em Direitos Humanos e da revisão das técnicas de abordagem, tendo como centro a igualdade e o princípio da não discriminação.
Para tanto, a EDUCAFRO provocou o Ministério Público Federal e, por meio deste, obteve a primeira reunião com o Departamento da Polícia Federal, responsável pelo controle das atividades policiais das empresas de segurança. Muito precisa ser melhorado pela Policia Federal. Em parte, os abusos praticados por empresas particulares estão diretamente ligados à falta de ações mais assertivas da Polícia Federal.
FREI DAVI SANTOS, OFM
Especialista em ações afirmativas, filósofo e teólogo.
MÁRLON REIS
Advogado, ex-juiz. Sócio do escritório Márlon Reis, Estorílio & Léda Advogados Associados.