A Lei n. 14.620/2023, que ficou conhecida como “Lei da Minha Casa Minha Vida”, teve reflexos que vão muito além das medidas de acesso a moradia, e trouxe importantes mudanças no campo da Desapropriação, Registro de Imóveis, Direito Civil, Direito Imobiliário, Direito Urbanístico e Habitacional.
Vamos tratar em uma serie de dois artigos essa temática complexa, de um modo simples e objetivo, visando analisar de modo crítico essas alterações.
O primeiro artigo abordará as questões voltadas ao Direito Agrário, Direito Registral e Civil, e o segundo artigo abordara Direito Imobiliário, Direito Urbanístico e Habitacional.
Direitos Reais e mudanças na Lei 10.406/2002 (Código Civil)
Novamente, nosso legislador no amago de sua incessante criatividade inova ao criar um novo direito real de natureza no mínimo duvidosa.
A Lei 14.620/2023, foi responsável por acrescentar dentre o rol taxativo dos direitos reais previsto no Art. 1.225 do Código Civil, seu inciso “XIV”, que prevê “os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão”.
Então, o ato através do qual um ente federativo é imitido provisoriamente na posse de um imóvel em caso de desapropriação, uma vez levado a registro na matrícula do imóvel, passa a constituir direito real, em pé de igualdade com a propriedade e demais direitos reais, e que pode inclusive ser objeto de cessão e promessa de cessão de direitos.
Sim, pasmem, a posse em si não é um direito real, mas o direito a imissão provisória de posse é. E tudo isso para atender ao interesse do Estado, que ficará mais claro a medida que nos aprofundarmos no estudo dessa complexa alteração legislativa.
Sabem qual é o reflexo disso? Se você tem um novo direito real, você tem uma nova categoria de bem patrimonial que pode ser submetido a condição de garantia real.
Se por um lado acrescentou-se esse direito dentre a lista de bens passiveis de hipoteca, com a adição ao Art. 1.470 do Código Civil de seu inciso “XI”, as inovações não pararam por aí.
O governo não está brincando, eles já promoveram, na mesma tacada a alteração no Art. 22 da Lei 9.514/1997 (Alienação Fiduciária de Imóveis), acrescentando os incisos “V” e “VI”, respectivamente para fazer constar dentre os bens e direitos que podem ser objeto da alienação fiduciária: “os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e a respectiva cessão e promessa de cessão” e “os bens que, não constituindo partes integrantes do imóvel, destinam-se, de modo duradouro, ao uso ou ao serviço deste.”
Sabem o que isso significa na prática? Que o estado quando for imitido provisoriamente na posse de um imóvel, já pode realizar no mesmo os trabalhos e tramites necessários a ceder esse direito a terceiros, de forma que esses cessionários possam emprega-lo para finalidade de garantia fiduciária.
Já imaginou uma desapropriação em que antes mesmo de se pacificar o valor devido a título de indenização o poder público pode ceder a um terceiro, ou terceiros um direito real, fundado numa imissão provisória de posse, mas que pode servir de garantia real para alienação fiduciária?
Agora imagine isso aplicado a uma desapropriação por interesse social para regularização fundiária de um núcleo urbano? A irreversibilidade da medida é óbvia, porque o bem além de ter sido desapropriado já terá sido dado em garantia fiduciária.
Novamente o Estado se agiganta perante os direitos individuais e a propriedade privada, e isso tudo passa desapercebido ao povo…
Registro de Imóveis e mudanças na Lei 6.015/1973 (LRP)
A lei de registros públicos, também sofreu diversas alterações, algumas já demandadas pela evolução do direito e outras, por força do tema que abordamos acima, alterando os artigos 176A e 195B da Lei 6.015/1973.
Para abarcar toda essa mudança, trazida à baila pela criação do novo direito real, seria necessário ainda, amoldar o sistema registral a essa nova realidade.
Dentre as demais mudanças, de caráter ordinário, podemos destacar, que a abertura de nova matrícula em caso de aquisição originária agora ocorrerá quando em primeiro lugar atingir parte de imóvel objeto de registro anterior, de modo que haja área remanescente na matrícula desfalcada, em segundo lugar quando essa aquisição atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro desfalcado, conforme Art. 176A, I e II da Lei 6.015/1973.
Essa matrícula então será aberta, com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição, a nova norma nesse sentido afasta a possibilidade de descrição das benfeitorias existentes, tudo conforme Art. 176ª, §2º da Lei 6.015/1973.
Todas essas disposições passam a ser aplicadas sem diferenciação à imissão provisória na posse, em procedimentos de desapropriação, em casos de aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia e sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório, tudo conforme Art. 176A, §5º da Lei 6.015/1973.
Outro destaque, é que o Art. 195B da supracitada norma, deixa de incluir entre as possibilidades de abertura de matrículas pelo poder público, mediante simples requerimento, as terras públicas.
Voltado as questões de Georeferênciamento, também muita coisa mudou, agora quando da averbação do memorial descritivo devidamente certificado pelo SIGEF na matrícula do imóvel, se realizadas buscas, não for possível identificar os titulares do domínio dos imóveis confrontantes do imóvel retificando, deverá ser colhida a anuência de eventual ocupante, devendo os interessados não identificados ser notificados por meio de edital eletrônico, publicado 1 (uma) vez na internet, para se manifestarem no prazo de 15 (quinze) dias úteis, sob pena de se presumir anuência tácita para concordar com o ato em si e os limites e confrontações apresentados, essas mudanças foram introduzidas pelo Art. 213, §17º da Lei 6.015/1973.
Destacamos por fim, nos termos do Art. 221,VI, da supracitada norma, que os contratos e termos administrativos, assinados com os legitimados, nos termos da desapropriação deverão ser submetidos à qualificação registral pelo oficial do registro de imóveis, previamente ao pagamento do valor devido ao expropriado.
Desapropriação e mudanças no Dec. Lei n. 3.365/1941
O Dec. Lei n. 3.365/41, é responsável por disciplinar o procedimento de desapropriação por utilidade pública, e sofreu mudanças substanciais, e dentre as mudanças operadas em seu conteúdo, que em grande parte consolidaram as alterações já previstas na MP 700/2015, vamos destacar algumas, no texto abaixo.
Foi reformulada a previsão legal constante no Art. 2, §2º e §2ºA, para que a obrigatoriedade de autorização legislativa para a desapropriação dos bens de domínio dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal pela União e dos bens de domínio dos Municípios pelos Estados, constasse modo expresso, só sendo dispensada em casos onde haja acordo entre os entes federativos envolvidos para fixar a responsabilidade quanto ao pagamento das indenizações decorrentes da desapropriação.
A alteração no Art. 3, I da supracitada norma passou a permitir que os autorizatários e arrendatários, em igualdade de condições com os permissionários de serviços públicos possam promover a desapropriação mediante autorização expressa constante de lei ou contrato, acrescentando a esse rol ainda a figura do o contratado pelo poder público para fins de execução de obras e serviços de engenharia sob os regimes de empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada.
Uma medida arriscada na proporção em que dota diversos prestadores de serviço, vinculados ao poder público de competência para intervir diretamente na propriedade privada.
A modificação no parágrafo único do Art. 4, garantiu mais equidade aos atos em que a desapropriação resultar em planos de urbanização, renovação urbana, parcelamento ou reparcelamento do solo previstos no plano diretor, já que passou a contemplar a possibilidade de o edital dos referidos projetos prever que a receita decorrente da revenda ou da utilização imobiliária integre projeto associado por conta e risco do contratado, garantido ao poder público responsável pela contratação, no mínimo, o ressarcimento dos desembolsos com indenizações, quando essas ficarem sob sua responsabilidade.
A nova disciplina do Art. 4º-A, passou a prever que caso o imóvel a ser desapropriado se caracterize como núcleo urbano informal ocupado predominantemente por população de baixa renda, o responsável pela desapropriação obrigatoriamente deverá prever, no planejamento da ação de desapropriação, medidas compensatórias.
Dentre essas medidas compensatórias, podemos destacar a realocação de famílias em outra unidade habitacional, a indenização de benfeitorias ou a compensação financeira suficiente para assegurar o restabelecimento da família em outro local, exigindo-se, para este fim, o prévio cadastramento dos ocupantes.
Nos termos da mudança introduzida no Art. 7, os poderes de ingresso no bem declarado de utilidade pública, antes restritos ao ente administrativo, passaram a abranger seus representantes autorizados, que agora detém o poder de ingressar nas áreas compreendidas na declaração, inclusive para realizar inspeções e levantamentos de campo, podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio de força policial.
Já é de algum tempo, que a norma legal assegurava ao proprietário desapropriado, em caso de divergência entre o valor do deposito prévio e o valor final fixado para a indenização, o direito de fazer incidir juros moratórios de 6% a/a, unicamente sobre o valor dessa diferença, mas para fechar nossa breve analise a esse respeito, destacamos as mudanças inseridas no Art. 15A, § 1º, passaram a prever que a indenização por lucros cessantes, devida quando o valor do deposito prévio divergir do valor final arbitrado judicialmente para indenização incidente em casos de desapropriação, apenas irá incidir em casos em que a desapropriação não se der por descumprimento da função social da propriedade.
Fica claro pelo acima exposto, que o estado está reorganizando seu aparato em diversos setores, e que podemos esperar grandes mudanças pela frente, cujos resultados certamente, vão impactar nosso ordenamento e a estrutura da econômica do país, como veremos no próximo artigo.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; Advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; Membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio-ABA; Membro Consultor da Comissão de Relações Agrárias-OAB/TO; Especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
costaneto.jus.adv@gmail.com