Desde setembro de 2023, inúmeros processos de titulação de terras devolutas federais através do INCRA foram suspensos por prazo indeterminado, conforme determinação expedida no Ofício Circular n.º 1296/2023/DF/SEDE/INCRA-INCRA (54000.095271/2023-69).
Devemos lembrar que vários desses processos referem-se a áreas já antropizadas, exploradas e tornadas produtivas há anos. Atualmente, para adquirir esse benefício, é necessário comprovar exploração e ocupação desde 22 de julho de 2008, ou seja, há mais de dezesseis anos.
Diversos produtores rurais, sejam em regime extensivo ou familiar, que estão explorando essas áreas foram, então, não somente privados de seu direito de acesso à propriedade, como também de qualquer possibilidade de acesso às linhas de crédito rural.
Mas por que isso aconteceu? Qual será o destino desses processos? O INCRA é o responsável por essa situação? Bem, é isso que vamos explicar neste artigo.
Regularização Fundiária de Terras Devolutas Federais
O primeiro passo é compreender como funciona a regularização fundiária de terras devolutas federais e o que são essas terras.
Terras devolutas federais são aquelas que estão sob a tutela da União, sob a égide do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Essas terras são as já arrecadadas pelo INCRA, por meio de discriminação administrativa ou judicial, e estão situadas preferencialmente nas faixas de fronteira, na Amazônia Legal e em zonas indispensáveis à segurança nacional.
Uma vez arrecadada a área, fixa-se a competência para promover a destinação da mesma (Unidades de Conservação, Território Tradicional, Terra Indígena, Reforma Agrária, etc.) ou direcioná-la para a regularização fundiária, que passa a ser responsabilidade do INCRA. Esta competência não se transfere, exceto por disposição expressa, como ocorrido nos casos de Roraima, Rondônia e Amapá, ou como se planeja para o Tocantins, conforme já tratamos em nosso artigo intitulado “Doação de terras devolutas pela União aos Estados, e o caso do Tocantins.”
O procedimento de regularização fundiária perante o INCRA culmina com a expedição, em favor do ocupante do imóvel, denominado beneficiário, de basicamente dois tipos distintos de documentos: a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e o Título de Domínio (TD).
O primeiro é destinado a áreas insuscetíveis de alienação, e o segundo a áreas onde é possível outorgar aos particulares o domínio sobre determinada área de terras devolutas.
O ponto é que não basta chegar ao INCRA, preencher um formulário e rezar para conseguir regularizar sua área. Todo o processo se desenrola em forma de um procedimento complexo e extremamente técnico, que, se não for conduzido por um profissional qualificado, nunca chegará a lugar algum. Isso porque os servidores estão obrigados a seguir exatamente o que dispõem as normas legais durante este procedimento, já que o rito, nesse caso, é extremamente formalístico.
Daí que, como veremos adiante, o culpado dessa problemática não é o INCRA, que apenas cumpre as normas que lhe são impostas, mas o governo federal, que impõe essas normas e não mede as consequências de seus atos e como eles podem impactar a vida dos cidadãos.
Florestas Públicas
As florestas públicas não são figuras novas em nosso ordenamento jurídico, e estão em voga, pelo menos a dezoito anos, mas somente agora, entraram em evidência no cenário nacional. Mas o que são florestas públicas? Podemos dizer que são as florestas, naturais ou plantadas, localizadas nos diversos biomas brasileiros, em bens sob o domínio da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal ou das entidades da administração indireta.
Disciplinadas pela Lei 11.284/2006, e instrumentalizadas pelo Cadastro Nacional de Florestas Públicas-CNFP, encontram-se dividas em: Floresta Pública Tipo A, Florestas Públicas Tipo B e Florestas Públicas Tipo C, observando sua dominialidade e arrecadação, e vamos te explicar isso de modo mais detalhado:
Tipo A: Florestas com destinação específica, como Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Assentamentos Rurais Públicos, áreas militares e outras previstas em lei. Destinam-se à proteção ambiental e ao uso por comunidades tradicionais.
Tipo B: Florestas em áreas arrecadadas pelo Poder Público, ainda sem destinação específica.
Tipo C: Florestas em áreas de dominialidade indefinida, conhecidas como terras devolutas não arrecadadas.
A maioria dos processos de regularização fundiária ocorre em áreas de Florestas Públicas Tipo B. Isso se deve, em primeiro lugar, à abrangência do polígono da Amazônia Legal e, em segundo lugar, porque essas terras devolutas já arrecadadas estão mapeadas e atendem aos requisitos para regularização fundiária. Em contraste, as áreas Tipo C, sem mapeamento preciso e georreferenciamento, o que dificulta a regularização de seus ocupantes.
Essas áreas não necessariamente são matas fechadas, e a sobreposição ao que é considerado floresta pública é analisada por meio remoto através de imagens de satélite, de forma que muitas vezes se acaba por incluir nessa classificação diversas áreas já exploradas de modo intensivo a muitos anos, inclusive mediante autorização do próprio governo federal, ou as reservar de áreas que estão em processo de regularização fundiária.
A polêmica da titulação em áreas de “floresta pública tipo B”
Antes de entrarmos nessa problemática, recomendamos fazer a leitura do nosso artigo intitulado Direito de Propriedade como um Direito Fundamental: Terras Devolutas, Reforma Agrária e Titulação, para que você melhor possa compreender a dinâmica do quão grave foi essa situação.
Toda essa situação foi desencadeada pelo Decreto 11.688/2023, que alterou o Art. 12 do Decreto 10.592/2020, inserindo o “§ 9°”. Esse parágrafo impôs um rol taxativo para a destinação das áreas de florestas públicas, limitando a liberdade do INCRA em sua regularização em favor de:
- Unidades de conservação da natureza;
- Terras indígenas;
- Territórios quilombolas;
- Territórios de outros povos e comunidades tradicionais;
- Reforma agrária; e
- Concessões florestais e políticas públicas de prevenção e controle de desmatamento.
E qual é o problema? Simples: esqueceram, propositalmente, de incluir a regularização fundiária nesse rol. Essa omissão confronta a Constituição Federal, pois contraria o direito de acesso à propriedade e as garantias constitucionais de preservação da função social da propriedade e do direito adquirido, trazendo enorme prejuízo à paz social.
Na promulgação do Decreto 11.688 em setembro de 2023, haviam diversos processos de regularização fundiária que já se encontravam com todos os requisitos legais para obter a titulação preenchidos e foram paralisados por um ato superveniente imprevisível. O mesmo aconteceu com áreas já tituladas em processo de liberação de cláusulas resolutivas.
Os ocupantes dessas áreas, muitos aguardando apenas a expedição de seu título de domínio, outros já com título em mãos e registrado, tiveram seu acesso ao crédito barrado devido aos efeitos desse decreto, pois essas áreas foram consideradas indisponíveis para regularização fundiária, ou seja, inalienáveis para esse fim, logo insuscetíveis de serem dadas em garantia, assim como sua produção.
Note-se que o referido decreto sequer especificou que os processos em andamento deveriam ser concluídos sob os requisitos vigentes no momento da elaboração do relatório de conformidade, ou sequer ressalvou os imóveis já titulados que estão apenas aguardando o decurso de prazo para liberação de cláusulas resolutivas. Abrangeu a todos indiscriminadamente, causando enorme prejuízo aos particulares, uma vez que, no caso dos processos em andamento para titulação, se compromete o direito de acesso à propriedade e a preservação de sua função social.
No caso dos imóveis já titulados em processo de liberação de cláusulas, ou os que aguardavam prazo, não só se violou o direito de propriedade, mas também a preservação do ato jurídico perfeito.
Além disso, essa disposição entra em conflito direto com o Art. 6º da Lei nº 11.284/2006, que trata da destinação de áreas de florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais. Tradicionalmente, a regularização fundiária de áreas ocupadas que coincidem com florestas públicas é conduzida conforme o próprio Art. 6º, III, da Lei 11.284/2006, que estabelece a inclusão de condicionantes socioambientais para assegurar a preservação da floresta, especialmente em propriedades de até quinze módulos fiscais, mas não veda essa possibilidade.
Diante dessa situação completamente irracional, o INCRA não teve alternativa senão emitir um ofício circular determinando o sobrestamento de todos os processos de titulação e liberação de cláusulas resolutivas, quando as áreas estivessem sobrepostas a florestas públicas, o que foi feito por meio do Ofício Circular nº 1296/2023/DF/SEDE/INCRA-INCRA (54000.095271/2023-69).
O PDL 2023
O Congresso Nacional, se mobilizou e iniciou a tramitação do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) n. 4672023 de autoria do Senador Marcos Rogério (PL-RO), destinado únicamente a “sustar, nos termos do art. 49, V, da Constituição Federal, os efeitos do § 9º do Art. 12 do Decreto nº 11.688, de 05 de setembro de 2023, que Altera o Decreto nº 10.592, de 24 de dezembro de 2020”.
No dia 12/06/2024 a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal (CRA) aprovou o Relatório do Senador Jaime Bagattoli (PL-RO), favorável ao Projeto de Decreto de autoria do Senador Marcos Rogério (PL-RO), e o projeto agora segue para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde certamente será aprovado.
Situação essa que muito se assemelha a revogação do veto presencial a Lei 14.757/2023, tratada de modo aprofundado em nosso artigo anterior “A polêmica da Lei nº 14.757/2023”. Isso é uma mostra da falta de sinergia entre o executivo federal e o legislativo.
E agora? Bom, agora é aguardar, com fortes expectativas de uma revogação nos próximos três meses.
Conclusão
Que a o §9° do Art. 12 do Dec. 11.688/2023, afronta diversos princípios constitucionais, e inclusive a própria ordem racional do sistema jurídico, isso me parece claro, que esse mesmo paragrafo contraria a própria Lei de Florestas públicas, isso também parece inequívoco. O que não é claro ainda é quem se beneficia esse tipo de iniciativa? Certamente aqueles que querem o atraso do desenvolvimento nacional, e que lutam contra a regularização fundiária, para tirar proveito da grilagem.
Verdade é que, a regularização fundiária é um meio efetivo de combate a grilagem e o desmatamento, vez que atribui responsabilidade a quem explora a terra, e submete essa exploração ao crivo de cumprimento da função social.
E quem julga se a exploração desse imóvel cumpre sua função socioambiental e merece ser regularizada? Uma análise técnica imparcial feita em parte por sensoriamento remoto, e parte por servidores públicos a cargo do INCRA. Quem prática qualquer crime ambiental, trabalhista, ou de outra natureza não busca regularização, pois prefere se manter no anonimato.
Sobre a retomada das titulações e liberações de cláusulas? Isso serão as cenas dos próximos capítulos.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; membro da Comissão Nacional de Direito Agrário e Agronegócio da OAB; membro Consultor da Comissão Estadual de Direito Agrário e Agronegócio da OAB/TO (2020-2021); membro da Comissão Nacional de Direito Ambiental da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2021-2022); membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2020-2021); especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
Contato Acadêmico: costaneto.jus.adv@gmail.com