Quando falamos em terras devolutas, existem diversos mitos que rondam a mente de nossos leitores, dentre eles, o de que o Brasil possui enormes áreas de “terras sem dono”, compreendidas “sem dono”, como sendo as ditas terras devolutas.
Terra devoluta, caro leitor, são todas aquelas que, não pertencendo a particulares, também não se encontram afetadas ao uso da União, Estados e Distrito Federal, e Municípios, ou de seus órgãos da administração pública direta ou indireta.
Essas terras pertencem, portanto, ao povo brasileiro, e são tuteladas pela União, por intermédio do INCRA, e pelos Estados, por seus órgãos próprios, devendo ser aplicadas a fins de reforma agrária e regularização fundiária.
Chamam-se devolutas, pois são aquelas que foram devolvidas pela Coroa de Portugal ao Império do Brasil, após a independência.
As terras devolutas que atualmente existem, não excedem 16,6% de todo o território nacional, ou seja, dos 540 milhões de hectares, ainda permanecem sem estatística de registro 141,1 milhões de hectares.
Das terras irregulares e abandonadas
Devemos destacar que isso não implica que esses 16,6% sejam efetivamente terras devolutas, significa apenas que, no cruzamento das bases de dados do governo federal, como IBGE, Funai, Incra, Ibama, Cadastro Ambiental Rural (CAR), e demais bases de dados da Receita Federal, como as que armazenam os dados das DIRPF/DIPRJ/DEFIS e DIMOB, dentre outas, não foi possível identificar informações sobre 141,1 milhões de hectares.
Realmente, uma parcela desses imóveis, não são, ou nunca foram alvo de propriedade privada.
Porém, na prática, grande parte desses imóveis estão apenas irregulares, pendentes da realização de procedimentos, na maioria das vezes, de regularização fundiária extraordinária, na via administrativa.
A maioria de tais procedimentos consistem na atualização cadastral do imóvel e de sua situação de propriedade, nas bases de dados do governo, ou do envio de trabalhos técnicos indispensáveis a caracterização do imóvel, como o Georreferenciamento e o CAR.
Alguns desses imóveis, porém, perderam a regularidade de sua transmissão de cadeia sucessória dominial, ou seja, em algum momento houve uma tentativa de transmissão de direitos sobre o referido imóvel sem a observância das exigências de Lei.
Há nesse meio, terras que foram vendidas, ou doadas e entregues, sem a celebração de Escritura Pública, com base em contratos particulares, em simples recibos, ou ainda na simples transmissão de posse sobre o imóvel pelo ato da tradição, ignorando-se todas as formalidades legais impostas a esse tipo de negócio.
Outra questão ainda, são os imóveis, que se encontram pendentes de inventários, e que foram indiscriminadamente objeto de vendas e doações, sem a observância de todas as exigências legais impostas ao caso, e por intermédio instrumentos ineficazes ao objeto.
E há também, imóveis que foram abandonados pelos antigos proprietários, e que hoje se encontram ocupados por posseiros, que sequer fazem ideia do histórico documental do imóvel.
Situação essa, agravada pelos altos custos dos procedimentos cartoriais, e dos impostos incidentes sobre a transmissão de propriedade inter vivos ou causa mortis.
Em todos os casos acima descritos, devemos ter atenção também, ao fato de que diversas posses originárias e a non domino, foram passadas a registro paroquial, não sendo levadas a efetiva legitimação pelo procedimento legal, mas que mesmo assim foram objeto de processos de divisão, demarcação ou inventário, e que a partir daí, conseguiram ingressar nos Cartórios de Registro de Imóveis, dando origem a títulos precários.
A maior parte desses títulos precários, por não atender as exigências legais, não constam das bases de dados do Governo Federal e nem dos Estados, e na maioria dos casos, esses títulos não garantem direito algum a seus titulares ou herdeiros, sendo alvo de constantes investidas por parte do poder público, em processos discriminatórios, objetivando sua arrecadação como terras devolutas.
Essas situações, em sua maioria, tiveram origem antes dos anos de 1970, quando o valor dos imóveis rurais era relativamente baixo, e os mesmos eram tratados com descaso pelos proprietários, e se perpetuaram no tempo, devido aos elevados custos de regularização e a falta de informação.
Da distribuição das Terras Devolutas
Com relação a sua distribuição, ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, a maior parte das terras supostamente devolutas, se encontram na região Nordeste do País e não no Norte.
O Norte por outro lado, -mesmo sendo, em alguns casos, região alvo de ocupação e antropização tardios-, foi intensamente monitorado pelo Governo Federal devido ao elevado potencial econômico de suas terras, no caso Amazonas, Pará, Acre, Rondônia e os antigos territórios federais de Amapá e Roraima são muito bem mapeados, especialmente, por uma marcante atividade feita pelos serviços de engenharia do Exército Brasileiro, ainda nas décadas de 70 e 80.
O caso especial do Tocantins, como Estado mais jovem da federação, é de uma boa ordenação fundiária, muito bem gerida pelo Instituto de Terras do Estado do Tocantins-ITERTINS na esfera estadual que se destaca pelas medidas de incentivo e apoio a regularização fundiária, e pela atuação do INCRA-SR26 na esfera federal.
Sua boa estrutura fundiária, em parte, se deve ao marcante processo de discriminação e arrecadação de terras devolutas, iniciado pelo então Instituto de Desenvolvimento Agrário do Goiás-IDAGO na década de 1970, e intensificado na década de 1980.
O Nordeste por outro lado, devido ao fato de ser uma região de colonização antiga, iniciada ainda no ciclo do gado e da cana de açúcar, foi alvo, portanto, de intensa exploração no período colonial, condição essa, propícia a existência de inúmeros títulos precários, originados nas diversas fases históricas de nosso direito de propriedade, e com sucessão dominial perdida ou irregular.
Outrossim, devido as agruras do clima semiárido, possui inúmeras áreas abandonadas, ou não reivindicadas por particulares, em regiões isoladas, e com baixo potencial econômico.
O Sul e Sudeste são regiões de intensa ocupação e antropização e com políticas fundiárias muito bem ordenadas, onde permanecem ainda poucas faixas de terras devolutas que, em sua maioria, consistem em pequenas ocupações, salvo raras exceções, em especial no norte de minas.
O Centro-Oeste por sua vez, embora possua estrutura fundiária bem organizada, ainda enfrenta serias dificuldades em diversos aspectos, como por exemplo no caso das regiões de ocupação e colonização anterior aos anos de 1977.
Grande parte dessas terras devolutas, em alguns casos, apresentam sobreposição de área com glebas alvo de documentação reivindicada como particular.
Há também casos piores, onde terras públicas, não devolutas, se encontram sobrepostas entre si, como por exemplo, há casos de área demarcada como reserva indígena pela Funai ser classificada como reserva ambiental por outro órgão estadual.
Está certo que muito deve ser feito, antes que realmente possamos nos orgulhar de nossa estrutura fundiária, porém, o Brasil não é um país de terras sem dono…., mas já foi uma terra de pessoas esquecidas e abandonadas no meio rural…
O que vem, a cada dia, sendo combatido pelas efetivas campanhas de regularização fundiária implementadas pelos Estados e pela União, as quais acreditamos deveriam ser mais bem divulgadas.
Outrossim, muito deve ser repensado, no que diz respeito ao acesso do cidadão aos serviços extrajudiciais, dos Ofícios de Registro de Imóveis e Notas, para que imóveis regulares, não caiam em comisso, devido aos altos custos dos procedimentos de transmissão de propriedade, e dos impostos incidentes sobre tais procedimentos.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; Advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; Membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio-ABA; Membro Consultor da Comissão de Relações Agrárias-OAB/TO; Especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF;
costaneto.jus.adv@gmail.com