Hoje falaremos desse valioso instrumento jurídico, instituído pela Lei nº 6.383, de 7 de dezembro de 1976, que no âmbito da União dispõe sobre o processo discriminatório de terras devolutas. Obviamente que vem sendo aplicado, no que couber, às terras devolutas estaduais.
O processo discriminatório, como o próprio adjetivo diz, é o que implica discriminação, e discriminação, vindo do verbo discriminar, é diferenciar, é distinguir, é separar, é especificar, enfim, visa separar terras públicas de terras particulares.
Não é tarefa fácil separar as terras públicas das terras particulares. Formou-se um consenso, um princípio moldado na esteira histórica da formação do Brasil de que todas as terras sem titularidade e desocupadas, mesmo que não devolutas, no sentido técnico do termo, são de propriedade da União. Isso se deu pelo comando do artigo 3º, § 2º, da Lei nº 601, de 1.850, onde está escrito que terras devolutas são “as que não se acharem no domínio particular por qualquer título legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura”
As ações discriminatórias são privativas do poder público e vem lá do direito romano como espécie do gênero das ações divisórias, pois é pura demarcação de terras públicas. Somente as terras devolutas são objeto do processo de discriminação, sob pena da ação morrer no nascedouro.
Para discriminar terras pública, o ente estatal pode optar em fazer administrativa ou judicialmente. A instauração do processo administrativo inicia com a implantação de uma comissão especial; e obviamente, o processo judicial começa com uma petição endereçada ao doutor juiz. Se de terras da União, ao juízo federal, se de terras do Estado, ao juízo estadual. E olha que tem muita gente boa apanhando para conseguir decifrar o enigma do que é terra da União e o que é terra do Estado. Os mais doidos conseguem inserir mais um ingrediente, válido, diga-se de passagem, se é terra municipal. Não pensem que a vida de advogado é fácil que não é.
Numa redundância, o processo discriminatório judicial é aquele que se efetiva por intermédio do Poder Judiciário, e independente se judicial ou administrativo, deve ser instruído com memorial descritivo que deve contar com riqueza de detalhes as características da área, os confinantes, certos ou aproximados, aproveitando, em princípio, os acidentes naturais. Claro, que nos dias hodiernos isso tudo é obsoleto diante da medição geodésica, que informa com precisão onde é cada ponto do polígono, discrimina de forma precisa o imóvel no globo terrestre, pois ângulo, e grau não mudam de lugar, como pensa alguns, como se as latitudes e longitudes mudassem com a força do vento, lembrando aqui da primeira aula de geografia.
O que é fundamental para os proprietários de terras particulares é que haja um rol das propriedades conhecidas dentro do polígono do objeto da ação discriminatória, o esboço circunstanciado da gleba a ser discriminada, pois facilita a discriminação, a separação do que é público e do que é particular.
A realidade das terras no Brasil, com raras exceções de alguns Estados, é que temos uma babel, uma bagunça generalizada, são tantos títulos, tantos documentos em uma área só. Essa celeuma se dá pela falta de ação do poder público, de discriminar as áreas públicas das privadas, mas o que estamos vivendo é a fomentação de invasão do que é público por particulares. O Estado tem um instrumento fenomenal para acabar de vez com a balbúrdia, mas infelizmente não usa. A título de exemplo, em Porto Seguro, por onde os irmãos patrícios chegaram, quase todos os imóveis têm problema de regularização, não está conforme a lei.
Grosso modo é isso, não iremos divagar nas questões processuais, não interessa ao tema, mesmo porque é técnico, de fácil compreensão.
Jurisprudência selecionada – EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO DE CANCELAMENTO DE TÍTULO DE DOMÍNIO COM PEDIDO DE CANCELAMENTO DE MATRÍCULA E REGISTRO IMOBILIÁRIO. DUPLICIDADE. ORIGEM DOS DOMÍNIOS IDÊNTICA. AQUISIÇÃO DOS REQUERIDOS PRECÁRIA. ESCRITURA PÚBLICA DE RENÚNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DE ARRECADAÇÃO PELO ESTADO COMO TERRAS DEVOLUTAS, GERANDO DOIS OUTROS TÍTULOS E NOVO REGISTRO. AÇÃO DISCRIMINATÓRIA. AUSÊNCIA. PERÍCIA JUDICIAL. EXISTÊNCIA DE VÍCIO. SOBREPOSIÇÃO DE ÁREA. NULIDADE DECLARADA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. NÃO PROVIMENTO. 1 – No caso em apreço, a origem dos domínios do autor/apelado e dos requeridos sobre a área em litígio são idênticas, ambos registrados sob o mesmo número de ordem, gerando duplicidade. 2 – A prova pericial reconhece que os títulos definitivos emitidos pelo ITERTINS se sobrepõem à área do autor/apelado. 3 – Impende ressaltar, contudo, que o título foi emitido pelo ITERTINS com base em premissa errada, já que a certidão juntada aos autos originários, expedida pela titular do Cartório de Registro de Imóveis de Paranã-TO, consta a \”INEXISTÊNCIA de Transcrição, Registro ou Matrícula\”, com os limites do imóvel sob litígio, que deu origem aos títulos emitidos pelo ITERTINS, quando na verdade existiam as matrículas do imóvel de propriedade do apelado. 4 – Com efeito, a arrecadação de área sob o domínio de particulares pelo Órgão estatal, somente seria possível após competente Ação Discriminatória, visando o Estado destacar o que de fato seria terras devolutas, ou seja, de domínio público. 5 – A simples arrecadação da área anulando uma cadeia dominial preexistente com vista a titular terceiros macula o direito de propriedade, uma vez que o registro, enquanto não houver o destaque de áreas públicas e áreas particulares, presume-se verdadeiro, à vista de que o ônus da prova cabe ao Estado, somente através de Ação Discriminatória, sobre a qual, até o momento, não se tem notícia de julgamento com trânsito em julgado. 6 – Assim, constata-se que os títulos expedidos pelo ITERTINS, área objeto do litígio, tornaram-se viciados a partir do momento que foram produzidos sobre um direito que não existia, ou seja, titularam uma área que não fazia parte da cadeia dominial constante da \”Escritura Pública de Renúncia\”, acabando os requeridos por receberem títulos de uma área que não possuíam. Portanto, evidente que os títulos dominiais expedidos pelo ITERTINS em favor dos requeridos são nulos de pleno direito. 7 – Conhecidos e não providos o apelo e o reexame necessário. para manter a sentença recorrida. (APRN 0001582-86.2015.827.0000, Rel. Desa. MAYSA ROSAL, 4ª Turma da 1ª Câmara Cível, julgado em 18/11/2015).
A leitura acurada do Julgado deixa claro o que fora exposto acima, ao longo do texto. A ação discriminatória é o instrumento adequado e muito eficaz para separar o joio do trigo, ou seja, separar o que é terra pública do que é terra particular, além de dizer que o Estado não pode fazer arrecadações sumárias, aquelas feitas sem a ação discriminatória, o que fere tudo que é princípio, fomenta a grilagem de terras. Em Tocantins para se emitir um título dominial é uma novela quase infindável, e quando emite é com vícios, emite na realidade um problema, uma demanda, títulos sem obedecerem aos ditames legais, em detrimento da forma correta de regularizar terras. O Estado tem o instrumento, mas usa para a política, os órgãos são usados como troca de favores, é o compadrio imperando aqui, isso é público e notório, zero novidade; e apenas alguns gatos-pingados, arrepiados e amedrontados, se dirigem ao Ministério Público, o que é uma lástima. É aquela impressão que impera no inconsciente coletivo: – não vai virar nada. Mas vira, é só tentar.
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MARCELO BELARMINO
É advogado, jornalista e técnico agrícola. Atua nos diversos ramos do direito, tendo foco central o direito Agrário o Imobiliário. Também escreve para o portal www.fazendasnaweb.com.br.
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