Como é corrente no ordenamento jurídico brasileiro, existem mais de seis tipos de usucapião. Hoje falaremos do constitucional rural, o pro labore, e que salvo engano já foi manejado por aqui. Mas vamos adiante com uma nova roupagem, é necessário pela grandeza do instituto.
Já dissemos por aí, e escutamos também, que a ação de usucapião constitui modo originário de aquisição de propriedade, logo, não há que se falar em transmissão de direito, é infundado o argumento. Em termos prático essa conclusão é de suma importância, pois com a aquisição do imóvel por esse novo dono, via usucapião, desaparece todos os ônus que por ventura existiam na matrícula anterior, incrementados pelo antigo dono, pois o histórico desaparece com o surgimento da nova matrícula, como morresse um homem velho, cheio de vícios e máculas, e nascesse um homem novo, sem vícios e máculas. Coisas impostas pela lei não é um acaso de percurso, a danada é sábia.
Um adendo é necessário, sobre a palavra usucapião. Ela é de dois gêneros, tanto faz dizer “a usucapião” como “o usucapião”. Aurélio diz ser substantivo feminino e masculino. O Código Civil de 1916 tratava como substantivo masculino, o de 2002 trata como feminino. E para os doidos de pedra, o termo é originário do latim: usucapione.
A usucapião constitucional ou pro labore, primeiramente foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro com o advento da promulgação da Constituição Cidadã, a de 1988. Sim, essa mesma que está sendo massacrada e vilipendiada, em seu artigo 191 prevê a aquisição de área de terras, em zona rural, não superior a 50 hectares por aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, a possua como sua, por cinco anos ininterruptos, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo a sua moradia.
Olhem bem, o comando constitucional diz ter como sua e ser a moradia, ou seja, não adianta ser uma ou outra, têm que ser as duas coisas. As posses vigiadas não terão lugar ao sol, fiquem calmos antes de consultarem os jurisconsultos na hora do rush, tomando cerveja, sem pagar a consulta do advogado.
Tempos depois, com a chegada ao mundo da Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, atual Código Civil, sacramentou de vez o instituto da usucapião rural ou pro labore, previsto no artigo 1.239. Mas a origem se deu com a lei nº 6.969, tento migrado o instituto para a Constituição de 1934, onde estava estampado no artigo 116 que “todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terras até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nela a sua moradia, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória, devidamente transcrita”. As Constituições de 1937 e de 1946 repetiram os comandos. A de 1988 em seu artigo 191 continuou a reza: “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”. O parágrafo único, tratando dos imóveis públicos diz que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Esse comando do parágrafo único vale para todas modalidades de usucapião, fiquem ligados.
Essa modalidade de usucapião é singular, não revoga as outras modalidades, pois limita sua aplicação a áreas rurais que não excedam 50 hectares. Caso exceda, claro, aí o operador do direito tem outros caminhos a trilhar, é bem fácil a lógica, é só pensar de forma ampla cada instituto, não ficar remoendo pequenos problemas, nas amarras das interpretações literais, o que mata quem milita no direito. Advogado que não lê filosofia e Machado de Assis, vai ser um autômato sem a grandeza que a profissão requer, bela e árdua, por sinal.
Repisando a questão, a lei, de olho lá nas origens romanas, não dá guarida para quem quer adquirir terras via a usucapião pro labore, e não cultiva nada. Não adianta brincar de movimentar a máquina judiciária com ilações, com utopias, lufadas de insensatez. Primeiro é fazer sulco fundo na terra, literalmente, para depois adentrar nos átrios do judiciário e expor o fato ao doutor juiz, achando este que o trabalhador merece o domínio, declara-o na sentença, mandando esta ao Cartório de Registro de Imóveis para que venha ao mundo o registro da mesma, e como dito alhures, surge um novo homem, sem vícios e máculas, pronto para o pecado.
Então, a questão é simples, e se resume basicamente no prazo de cinco anos, ter a morada habitual, não possuir outro imóvel, seja urbano ou rural, ter a terra como sua, não ter oposição, não ser superior a 50 hectares e exercer economicamente a posse, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família. Caso isso não esteja ocorrendo de amplo, fiquem em casa, a pandemia te pega, a pandemia da não declaração de domínio, o que vai ser um vale de lágrimas em tua vida. O Judiciário não acode o desidioso, o preguiçoso, o nome indica tudo, pro labore, de laborar, de trabalhar.
Antes da despedida, é bom levar uma informação importante para quem esteja pensando em usucapir terras adquiridas por sucessão. Pela ótica do artigo 1.239 do Código Civil, somente o sucessor universal continua com o direito de pleitear o domínio, e se morava com o finado e com ele cultivava a terra. A sucessão singular não dá direito ao propósito legal, não pode ser unido a posse do antecessor com a do sucessor, mesmo que sejam contínuas e pacíficas. Não adianta fazer beicinho, é assim mesmo, é a lei, irmão.
Não podendo esquecer a condição da composse, no caso de existir mais de um possuidor no imóvel objeto da ação de usucapião. É simples, todos devem cumprir o que diz a lei: – trabalhar e morar no imóvel.
Jurisprudência selecionada. EMENTA APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. USUCAPIÃO PRO LABORE. ARTS. 1.239 DO CC E 191 DA CF. AUSÊNCIA DE PROVA CONSTITUTIVA DO DIREITO DA PARTE AUTORA. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. 1. Os arts. 1.239 do CC e 191 da CF definem os requisitos legais da usucapião especial rural (ou Constitucional Rural ou Pro Labore), quais sejam: (i) posse com animus domini pelo prazo de 5 (cinco) anos, sem oposição, (ii) área de terra em zona rural não superior a 50 (cinquenta) hectares, (iii) utilização do imóvel como moradia, tornando-o produtivo pelo trabalho do possuidor ou de sua família, e (iv) não ser o possuidor proprietário de outro imóvel rural ou urbano. 2. Ausente as provas que poderiam preencher os requisitos legais da usucapião especial rural – direito constitutivo do autor (art. 373, I, do CPC). Improcedência da demanda que se impõe. A revelia não importa presunção absoluta de veracidade dos fatos. Na ação de usucapião rural é dever da parte autora produzir provas capazes de demonstrar o preenchimento dos requisitos exigidos em lei. 3. Recurso de apelação conhecido. Provimento negado (Processo: 50001293520108272719. 05/03/2020).
O recente Julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins, é de clareza estonteante, é tudo o que fora dito ao longo do texto em poucas palavras. Diz que o autor da demanda não preencheu os requisitos impostos pelo ordenamento. Vejam que cita todos os requisitos, ou seja, não adiante preencher um ou alguns em detrimento de um ou de uns. A lição que manda para os operadores do direito é a mesma para o amor, o bom não é aquele fervilhar de emoções avassaladoras, o bom mesmo é o carinho antes de fazer a peça jurídica, não a sentença declaratória em si, notadamente a de que o advogado não leu a lei. É duro, é a lei!
___________________________________
MARCELO BELARMINO
É advogado, jornalista e técnico agrícola. Atua nos diversos ramos do direito, tendo foco central o direito Agrário o Imobiliário. Também escreve para o Portal www.fazendasnaweb.com.br.
advocaciammb@gmail.com