Quando o assunto são terras devolutas, existem basicamente duas espécies que podemos destacar. As “Terras Devolutas Federais” e as “Terras Devolutas Estaduais”, sendo o critério para discernir entre umas e outras o da arrecadação.
E o que é arrecadação?
A arrecadação é o ato mediante o qual um órgão fundiário competente, após extremar as terras devolutas e as públicas das particulares, através de um processo discriminatório, insere as áreas devolutas de modo formal no acervo sob sua tutela, de modo organizado, através de seu correto mapeamento e catalogação.
E como se divide essa competência?
Competência para arrecadação
O INCRA exerce em nome da União, a preferência para arrecadação de gestão de alguns tipos de áreas, sendo elas:
- As inseridas dentro do bioma da amazônia legal;
- As terras devolutas situadas dentro das faixas de fronteira;
- As terras devolutas indispensáveis à defesa das fortificações e construções militares;
- As terras devolutas indispensáveis a defesa das vias federais de comunicação;
- As terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental, e as áreas indígenas;
- Os terrenos de marinha, as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras;
Nessa linha de raciocínio, as áreas elencadas nos últimos quatro tópicos não podem ser alienadas a particulares, pois a própria constituição federal em seu Art. 20, as elenca dentre os bens da união. Mas não nos olvidamos que possam ser regularizadas, tendo por objeto a outorga ao particular de concessão de direito real de uso a famosa CDRU.
Pois bem os dois primeiros grupos, que podem ser alienados aos particulares mediante outorga de Título de Domínio-TD, serão de especial interesse para esse artigo.
A competência dos Estados por sua vez, é residual tudo aquilo que não é de competência da União, quando o assunto são terras devolutas, cabe aos Estados e ao Distrito Federal.
A polêmica das margens de rodovias federais
Em diversos Estados, principalmente no Tocantins, as margens da BR 153, vastas áreas de terra foram arrecadadas pelo INCRA, para atender aos interesses da União.
Isso se deu em razão de expressa disposição legal, instituída pelo Dec. Lei n. 1.164/1971, que previa como sendo indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais, na região da amazônia legal, as terras devolutas situadas na faixa de cem (100) quilômetros de largura, em cada lado do eixo de diversas rodovias federais, dentre elas a BR 153.
Tal previsão vigorou até que a norma acima tivesse sua revogação efetivada pelo Dec. Lei n. 2.375/1987, porém uma vez arrecadadas pelo INCRA, essas terras passaram a integrar o acervo das terras devolutas federais, por força da consumação do ato jurídico perfeito, e mesmo que legalmente não fossem mais indispensáveis a segurança e ao desenvolvimento nacional, permaneceram sob a égide do INCRA.
Essa situação já causou grandes problemas entre os Estados e a União, vez que diversos foram os casos em que os Estados realizaram titulação para finalidade de regularização fundiária, sob áreas da União, sendo, portanto, esses títulos expedidos, nulos de pleno direito.
Doação de áreas pela União aos Estados.
Recentemente o Estado de Roraima, antigo Território Federal de Rio Branco, e o Estado do Amapá, antigo Território Federal de mesmo nome, se tornaram destaques no cenário nacional quando por intermeio das inovações trazidas pelo advento da Lei n. 14.404/2020, que instrumentalizou a Lei n. 10.304/2001, receberam da União o repasse de diversas porções de terras devolutas federais, arrecadas pelo INCRA, que seriam transferidas aos Estados.
Para receber esses repasses o Instituto de Terras de Roraima-ITERAIMA, e o Instituto de Terras do Estado do Amapá-AMAPÁ TERRAS, passaram por uma profunda reestruturação em sua legislação fundiária, e acima de tudo em seu sistema de gestão processual.
O AMAPÁ-TERRAS, adotou, o hoje o já testado e aprovado, sistema chamado SICARF, comparável a PGT do INCRA em diversos aspectos.
O SICARF é utilizado também, em aspecto estadual, pelo Instituto de Terras do Estado do Maranhão-ITERMA, Instituto de Terras do Estado do Pará-ITERPA.
Já o Estado de Roraima optou por instrumentalizar sua gestão processual, através do Sistema Eletrônico de Informações-SEI, de modo semelhante ao implementado pelo INCRA, para complementar as funcionalidades da PGT na tramitação interna.
Em ambos os exemplos acima referidos, a estrutura de organização fundiária dos Estados citados, passou por uma profunda reforma, de modo a transmitir maior celeridade e transparência aos procedimentos de regularização fundiária.
E isso foi indispensável ao sucesso das transferências de terras, porque o INCRA, sempre foi o melhor modelo de regularização fundiária em território nacional, principalmente desde a implementação do sistema SIGEF-TÍTULAÇÃO e recentemente da Plataforma de Governança Territórial-PGT, ambos sistemas altamente operacionalizáveis e acima de tudo leves, com especial destaque a PGT que encontra-se operando de modo síncrono as bases de dados do SNCR, SICAR, SIGEF, CAFIR, CNIR.
A problemática envolvida
Alguns fatores devem ser levados em consideração, com relação a essa temática. Em primeiro lugar a malha fundiária de imóveis arrecadas pelo União em diversos estados do norte, já foi objeto de inúmeros processos de regularização fundiária, com diversos títulos outorgados, e muitos deles sequer foram levados a registro, ou objeto de realização de Georreferênciamento ou CAR. Mas mesmo assim, desde que quitados, e respeitadas as condições resolutivas, os imóveis objeto desses títulos são particulares. Isso é, para não falar dos imóveis em comisso…
O acervo é vasto e complexo, já que o mosaico fundiário hoje gerido pelo INCRA, conta com apoio da melhor tecnológica existente em solo nacional, e mesmo assim enfrenta dificuldades.
Ambas as situações acima descritas, geram em primeiro momento um sensível problema no que diz respeito ao risco de que haja sobreposição de áreas, quando uma vez transferido acervo o fundiário, os Estados derem início a operacionalização dos processos de regularização, o que não é coisa rara de acontecer.
Em segundo momento a recepção por um órgão que conta com seu acervo e, estrutura operacional e de tramitação processual, ainda em modo físico, onde as plotagens de áreas são feitas ainda de modo manual, é para não dizer impossível, ao menos de extrema complexidade. Isso porque um sistema com inúmeros processos em andamento, todos em meio digital, hoje gerido pelo INCRA, em tese não poderia ser transferido a alguns Estados, por falta de operacionalidade.
São assuntos que a primeiro momento, devem ser debatidos com seriedade, embora pareçam desagradáveis a alguns, já que o objetivo é dar mais celeridade e efetividade à regularização fundiária, em benefício do cidadão tocantinense, ao invés de simplesmente transferir do INCRA ao Estado uma carga que esse último não consegue sustentar.
A transferência das terras da União ao Amapá e Roraima, foi iniciada ainda em 2001, e ainda não se concluiu por completo.
A questão do Tocantins
No caso do Tocantins, tramita junto ao Senado Federal, para com a finalidade de transferir para o domínio do Estado de Tocantins as terras pertencentes à União. A proposta é representada pelo PL 11.199/2023, que foi apresentada pelo Eduardo Gomes (PL-TO), e encontra-se em tramitação acelerada no Senado.
Recentemente ainda, no dia 24/08/2023, a Secretaria de Patrimônio da União-SPU, doou uma área com 1.103.063,00 m², beneficiando aproximadamente 1.050 famílias de São Bento do Tocantins. A área que totaliza todo o perímetro urbano do município de São Bento do Tocantins ainda pertencia a União.
E esse ano novamente nesse pequeno município tão ao norte do estado, teve início um estudo da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais (CTD), através do Grupo de Trabalho de Diálogo Federativo criado no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com objetivo de fomentar a discussão acerca da viabilidade de transferência das terras pertencentes à União para o domínio do estado do Tocantins.
O Tocantins possui catalogadas, 551 (quinhentas e cinquenta e uma) glebas federais, 82 (oitenta e uma) delas com georreferenciamento de perímetro, totalizando 6.909km2 (quilômetros quadrados), e 469 (quatrocentos e sessenta e nove) glebas em etapa de georreferenciamento de perímetro, num total de 17.789km2 (quilômetros quadrados). A área remanescente de glebas federais representa aproximadamente 7% (sete por cento) do território Tocantinense, e encontra-se extremamente fragmentada, o que pode tornar o processo de doação bastante difícil e demorado. É importante destacar que na elaboração desse estudo deve ser levado em consideração, que dentro desse percentual, ainda existem áreas afetadas a finalidade pública pelo governo federal, em processo de afetação, ou em processo de destinação, as chamadas áreas de interesse público da União, que não integraram o rol das que podem ser objeto de doação.
Feitas essas considerações, por enquanto, devemos aguardar as cenas dos próximos capítulos.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; membro da Comissão Nacional de Direito Agrário e Agronegócio da OAB; membro Consultor da Comissão Estadual de Direito Agrário e Agronegócio da OAB/TO (2020-2021); membro da Comissão Nacional de Direito Ambiental da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2021-2022); membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2020-2021); especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
Contato Acadêmico: costaneto.jus.adv@gmail.com