Deu uma lapada com a mão de dedos colados, mas ela, num looping, conseguiu esquivar-se. Reequilibrou-se no ar e outra vez arremeteu audaciosa num rasante sobre os nacos de picanha espalhados pela tábua à mesa ao lado da churrasqueira, da qual porejava uma fumaça perfumada a alho e sal grosso.
— Inferno de mosca!
O churrasqueiro, então, puxou o pano de prato do ombro e, numa estilingada, estalou-o em direção ao indesejado e repulsivo inseto, que acabou engolido pela noite calorenta de Palmas no imenso quintal da residência do deputado Júnior Costado.
Na roda próxima, Dofredo, com sua doce Judite pendurada ao ombro, dilacerava um pedaço de carne, vertendo uma enxurrada de suor, que escorria densa pelo rosto e empapava a camisa. De lábios besuntados de gordura arremessou para o grupo o último fuxico palaciano em meio a uma chuva de perdigotos: onde o governador aparece, o Zé Cunha da Casa Civil está às costas. Após a piscada matreira, a atenta espiada ao redor, uma dentada e um chupar de dedos oleosos, o lento e estalado mastigar, voltou a insinuar a futrica que tomava conta de todos os andares do Palácio: não tem uma foto em que o dito-cujo não se faz de papagaio de pirata. Girou o pescoço medindo as reações. Um riso fraco, hesitante e intercadente.
Inês da Secad contemplava o nada, inexpressiva; Eduardo da Seduc mirava o pé que roçava a grama; Gilberto da Sefaz esboçava um ar de absoluta neutralidade; e Divino da Sesau pedalava a tela do smartphone como se algo procurasse.
— Aquilo é mais pra frente que sapato de palhaço… — arriscou-se Afonsim, o novato assessor da Seplan. — Adora ser visto por todos, de puxar saco e aparecer nas fotos dos sites atrás do governador… Mais papagaio de pirata, impossível! — continuou o falastrão numa gaitada, sob os olhares assustados dos demais.
Dofredo emudeceu de abrupto, sacou o celular e, numa atenção séria, digitou com dedos ágeis. Inês da Secad, aflita, acotovelou Eduardo da Seduc, que, de sobrancelhas assanhadas, sinalizou para Gilberto da Sefaz. Divino da Sesau ainda pedalava a tela do smartphone como se algo procurasse, agora com leve vibração nas têmporas que fazia tremelicar a caudalosa torrente de suor que lhe rolava pela face.
A expressão de Dofredo, então, saiu repentinamente de especulativa para defensiva e passou a ponderar que, por outro lado, há quem diga que é o governador que exige a permanente presença de Zé Cunha. Especulou: poderia ser uma demonstração clara da confiança total do “homem” no seu poderoso secretário.
— Não acha? — por cima dos óculos de aro vermelho que decoravam sua cara redonda e ainda chupando os dedos gordurentos, Dofredo encarava de olhos esbugalhados o destemido Afonsim.
— Exige nada! Esse secretário é só um puxa-saco! — insistiu o loquaz neófito da Seplan. — Por que estão com essas caras de susto? Viram fantasma? — questionou reparando os semblantes temerosos no seu entorno. — Estou dizendo alguma mentira? Ora, todo mundo sabe disso…
Dispersão geral. Divino anunciou bruscamente que iria apanhar uma cerveja. Mal perguntou ao grupo quem mais queria, já se afastou em disparada enfiando o celular no bolso. Inês o seguiu, depois Gilberto, com Eduardo também no rastro.
— Eu, hein! Povo maluco! — reagiu o audacioso Afonsim. E, num andar firme, ritmado pelo balançar de braços convictos, foi com os outros buscar a bebida.
Judite deslumbrava-se com tantos figurões transitando pela festa do Júnior Costado. Secretários de Estado, prefeitos e vereadores do interior, senadores, deputados federais e estaduais ocupavam o imenso gramado no fundo da mansão, servidos num vai e vem contínuo de garçons. Mal acreditava que conseguira fisgar alguém que frequentava tal ambiente. E dizia a Dofredo ter acertado em cheio ao aceitar seu insistente pedido de namoro, a ponto de já estar até arrependida de titubear inicialmente, de deixar no vácuo as melosas mensagens no celular, de concordar com os encontros e não comparecer, de jogar no lixo os frequentes buquês e presentear amigas gulosas com caixas e mais caixas de bombons recebidas de seu pretendente.
Ver toda aquela gente importante cumprimentando e abraçando seu amado a deixava estonteada. Mas pedia que Dofredo reiterasse a função que exercia no Estado e que lhe dava tanto prestígio junto a tão seleto público. Ainda não conseguira captar o significado do eminente ofício. O rapaz uma vez mais encheu o peito para retumbar o pomposo cargo de Assessor Extraordinário para Informações Gerais do Gabinete do Governador. Sua atividade, gabava-se, consistia em percorrer diariamente as secretarias, coletando fatos estratégicos para subsidiar os rumos do governo. Por isso era tão conhecido e respeitado pelos mais poderosos nomes da política estadual — sublinhava, alteando o indicador emproado.
Desafiado pela garota a demonstrar sua expertise, Dofredo não titubeou em apontar o magricela, de cabelos pretos e lisos, terno folgado, num mover esquelético e esquálido. Para não restar a mínima dúvida sobre seu profundo conhecimento das tramas governamentais, deu a ficha daquele secretário executivo: sabia que a esposa era amante do chefe, mas não se incomodava, porque aquela relação extramatrimonial o mantinha seguro no cargo desde o início da atual gestão. Mas o sujeito também demonstrava fidelidade ilimitada à gestão. Prova disso, o fato de ser o principal informante do Assessor Extraordinário para Informações Gerais dentro da Secretaria da Economia Criativa.
— Uau! — admirou-se a garota.
Navegando em mares dominados, Godofredo, então, indicou o refinado secretário, que, num andar elegante e gestos educados, conversava numa roda que tinha como ouvintes o senador Edmar Lima Santos, a deputada federal Luma Entoada e o prefeito Edgar Senhorinho. Segundo seus apontamentos, o amável servidor da Secretaria de Relações Legislativas saía com aquele casado senador e era amigo confidente da ciumenta esposa do ilustre parlamentar. Num olhar de mistério avisou que, se a história vazasse, babau a candidatura a governador de Edmar nas próximas eleições.
— Nossa, amorzinho! Você simplesmente sabe tudo dos poderosos…
— E aquela ali — fez o assessor sobre a mulher de semblante severo que apertava com firmeza a mão da deputada Rosa Caridade, que acabara de chegar à festa. — Nem te conto…
— Conta, conta, conta…
Na Secretaria das Cidades e Urbanismo é conhecida como a “mulher de ferro”. Engenheira que coordena todos os projetos da pasta, mantém, sob pulso forte, o andamento de cada processo. Empreiteira para entrar lá, avisou Dofrego, tem que comer na mão dela. Quer dizer, já emendou o rapaz em tom maledicente e quase inaudível, dela e do deputado anfitrião da festa, Júnior Costado, que recebeu a secretaria como lote pessoal para exercer sua forte liderança na Assembleia em favor do governo. A “mulher de ferro” é, na verdade — concluiu triunfante —, preposta do prestigiado parlamentar.
— Você é incrível, meu bem!
Ela voltou em nova arriscada tentativa de deleitar-se com a suculenta iguaria espalhada sobre a tábua à mesa ao lado da churrasqueira. Em sucessivos loopings, aproveitando-se da distração do cozinheiro, que travava amena conversa com o auxiliar, a mosca pôde, enfim, pousar sobre os nacos de carne as patas que sabe-se lá quais fezes, feridas e animais mortos tripudiaram. Após longos segundos sobre um pedaço saltava para outro e outro e outro, como beija-flor sugando o néctar de flores do jardim. Até que os estalos do endiabrado pano de prato, mais uma vez, ribombaram, interrompendo seu idílico passeio carnal. Por pouco, aquele ser indesejado e repulsivo conseguiu safar-se na escaldante noite de Palmas, numa época em que setembro já silenciara a ventania de agosto.
Dofredo encontrou o mesmo grupo reunido no canto oposto àquele em que pouco antes fazia as indagações costumeiras de seu métier. Afinal, gostava de exaltar-se por nunca tirar folga. Sempre a postos a levantar informações estratégicas necessárias ao bom andamento do Estado. Chamou-lhe a atenção o súbito silêncio da roda assim que os circundantes deram por sua presença e o assombro que agora tomava o rosto do antes trocista e verborrágico Afonsim, o neófito assessor da Seplan.
Ao ver a aproximação do servidor do Gabinete do Governador, o até há pouco destemido rapaz já o rodeou de gentilezas e lisonjas. Por fim, o estreante funcionário do Planejamento, num choro repentino, pediu-lhe que ignorasse as abusadas considerações desajuizadamente exaradas sobre o poderoso Zé Cunha da Casa Civil.
— Não se preocupe, meu caro. Zé Cunha é um homem justo e de bom coração — reagiu metalicamente o assessor palaciano.
Afonsim girou o olhar pela roda em busca de algum socorro. Inês da Secad, bebericando a cerveja, ainda, como há poucos minutos, contemplava o nada, inexpressiva; Eduardo da Seduc voltou a roçar a grama e mirar o pé; Gilberto da Sefaz esboçava o mesmo ar de absoluta neutralidade; e Divino da Sesau insistia em pedalar a tela do smartphone em busca de algo que nunca encontrava.
Dofredo abanou-se com o colarinho da camisa empapada de suor, abraçou sua doce Judite e dirigiu-se à porta da mansão que dava acesso ao quintal, de onde o deputado Júnior Costado irrompia ladeado pelo governador e pelo sempre presente e mais que prestigiado secretário Zé Cunha.
Às costas do assessor extraordinário para Informações Gerais do Gabinete do Governador, os murmúrios lamentosos dos servidores em torno do inconsolável Afonsim, enquanto, do breu, lá veio novamente a insistente e repugnante mosca, em loopings e ziguezagues, para outra ofensiva contra os nacos suculentos de picanha repousados sobre tábua ao lado da churrasqueira.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.