Neste nosso País de dimensões continentais, as características regionais se acentuam de forma clara e maravilhosa. Aqui no centro norte, momento de seca e queimadas, com os ipês, em especial o amarelo, se destacando na paisagem árida lembrando grandes cálices divinos e dourados, mostram que está chegando o momento de nos deliciarmos com a chegada das primeiras chuvas.
Esse extraordinário fenômeno natural que aliado com as palavras, despertam em todos nós emoções poéticas e cheias de sonhos que nos levam às recordações de infância e adolescência.
O mês de setembro que já está chegando e se prepara para a chegada da primavera, diga-se de passagem, a mais bela do ano, quando a natureza já se manifesta para nos presentear com as primeiras chuvas e a terra árida e ferida pelo sol causticante aguarda o milagre do líquido cicatrizante das águas.
Quando as árvores dos quintais e dos campos, planícies, campinas, cerrados e a bela Serra Geral se angustiam à espera de madrugadas acompanhadas daquelas chuvas fininhas e dormideiras, na expectativa de eclodir em vidas em forma de flores e frutos.
Quando quase tudo irá se mostrar em novas vidas ou vidas renascidas e as manhãs e tardes se fazem nubladas e enfumaçadas e mais quentes, duvido que exista alguém, principalmente nascida em nossa região, onde temos quase que em um rito religioso, a obrigação de conhecer os mistérios da natureza, ou pelo menos apreciá-los, que não se deixe embalar pelos momentos mágicos das primeiras chuvas, aquelas que chegam antes da nova e bela estação do ano e que nos força a recordar o tempo de criança, pois veem para molhar e irrigar as minúsculas flores, em especial dos cajueiros do campo que em breve serão frutos.
Duvido que não se lembre da época em que os números tinham valor apenas para as quatro operações matemáticas, sem disputas de valores materiais, servindo tão somente para contarmos as emoções e marcarmos o tempo sem compromissos de adultos e cheios de interesses.
Duvido que não se lembre dos quintais que não conheciam cercas elétricas e suas divisas eram apenas a linha de amizade e respeito pelos vizinhos; das incontáveis mangueiras, laranjeiras, abacateiros, videiras e amoreiras, todos floridos e que a cada ventania transformavam o solo em tapetes divinos; do caju temporão e a manga verde com sal; que não se lembre das noites quentes quando muitas famílias sentavam-se em grupos nas calçadas para estreitarem amizades e ouvirem o serviço de som da cidade que através de alto-falantes, sempre alguém estava oferecendo músicas para outro alguém; duvido que não se lembre das brincadeiras de esconde-esconde, salva-companheiro, pular cordas, salto de distância e altura; das disputas de jogos de finca, pião e bola de gude à sombra de grandes árvores; não se lembre dos banhos nos córregos e rios dos arredores da cidade, escondidos dos pais; que não se lembre das roças queimadas e o solo calcinado pelo fogo ateado de boa fé pelos ingênuos cultivadores da terra; que não se lembre das melancias subtraídas de pequenas plantações; das arapucas e alçapões armado nas lavouras colhidas e das caçadas de juritis, inhambus e galinhas d’água em fins de tardes; que não se lembre da sirene instalada em ponto estratégico anunciando os horários das aulas, das refeições e do descanso diários para toda cidade; que não se lembre das badaladas do sino da igrejinha da praça anunciando a hora do angelus.
Enfim, que não se lembre do lar antigo em rua tão simples que ficou para trás com nossos pais, irmãos e amigos.
E neste momento tão especial, ouso transcrever um poema de nossa autoria, intitulado “Primeiras Chuvas”, inserido no livro Poemas Azuis: …e esse rito pré-nupcial da terra/ Adolescente em amor / Das primeira chuvas à espera?/ Envolvendo-se num véu de fumaça sufocante / Abafando o sol e escondendo a lua / Num ciúme de cio a terra se aquece. / E o ritual continua…/ Trovões, raios… / Como na última primavera./ A terra se prepara para o ato final. / O líquido frio desce / Em suas entranhas penetra…/A terra saciada / Com cheiro bom de fêmea fecundada / Outra primavera aguarda / Que trará novas chuvas / E repetirão o ritual sagrado.
E surpreendo-me, novamente, tentando decifrar esse grande apego aos símbolos da infância aliados às primeiras chuvas, essa ligação tão íntima com a natureza, esse amor tão intenso pela terra e encontro apenas uma plausível explicação no preceito bíblico: Tu és pó e em pó hás de tornar.
JOSÉ CÂNDIDO PÓVOA
É poeta, escritor e advogado; membro-fundador da Academia de Letras de Dianópolis.
candido.povoa23@gmail.com