Por volta de 1500, um médico pensou a medicina de um modo diferente. Seu nome era Paracelso. Segundo ele, “todas as substâncias são venenosas, não existe nada que não seja veneno, somente a dosagem correta diferencia o veneno do remédio”.
Vivemos um momento terrível para a raça humana, em razão de um vírus pouco conhecido até para ciência mais sofisticada do mundo, mas de poderes devastadores: a Covid-19. É até mesmo intuitivo que providências devam ser adotadas com rapidez e a qualquer custo, já que estamos tratando da diferença entre a vida e a morte.
[bs-quote quote=”Mas como controlar, se tudo é urgência? Ninguém quer atrapalhar quem está salvando vidas para perguntar preço, embora estejamos no Brasil, onde esta pergunta é razoável” style=”default” align=”right” author_name=”ANDRÉ LUIZ DE MATOS GONÇALVES” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2020/04/Andre_Luiz_de_Matos_Gonalves_180.jpeg”][/bs-quote]
Políticas públicas custam dinheiro e, neste caso, que se trata de política pública sanitária de urgência, o investimento é alto. É claro que nada disso estava nos nossos planos para 2020; é claro que o orçamento público não tinha um real previsto para esta despesa fortuita e urgentíssima.
O Governo Federal abriu os cofres, tal como um pai de família que tinha feito um esforço enorme, por muito tempo, para guardar algum dinheiro e agora vai gastar tudo com a doença. A MP 938 abre créditos extraordinários de R$ 16 bilhões, só para começar, a fim de socorrer os entes da Federação. Contudo é necessário garantir que todo este esforço não seja despendido fora do “Teatro de Operações” necessárias ao combate à Covid-19. Mas como controlar, se tudo é urgência? Ninguém quer atrapalhar quem está salvando vidas para perguntar preço, embora estejamos no Brasil, onde esta pergunta é razoável.
Os gastos não estarão restritos aos insumos necessários diretamente, como máscaras e remédios. O combate engloba também prestações sociais como cestas básicas e outros necessários para manutenção da subsistência das pessoas enquanto não podem voltar ao trabalho regular, muitas vezes, o informal.
Com o reconhecimento dos decretos de calamidade pelas diversas Assembleias Legislativas do país, nos termos dos que diz o art. 65 da LRF, os municípios estarão dispensados do atingimento das metas fiscais (constante cuidado entre as receitas e despesas); dos prazos para readequação de gastos com pessoal (art. 23 e 70 da LRF); da delimitação da dívida pública (o freio que antes impedia o endividamento para suportar o déficit financeiro) e da delimitação de empenho (art. 9º da LRF).
Mas ao que parece, toda essa flexibilização decorrente do art. 65 da LRF era insuficiente, pois não contemplava renúncias de receitas, com concessão de benefícios em tributos. Neste momento alguém pode perguntar: mas o que tem isso a ver com o combate à Covid-19? A resposta é: tudo! O isolamento social e o desaquecimento natural que isso traz para o comércio, para o turismo e outros tantos setores, estão adoecendo também o patrimônio empresarial do país, prenunciando no horizonte, com isso, uma onda jamais vista de desempregos e de recessão.
Nasceu, então, a Ação direta de Inconstitucionalidade n. 6357-DF. Mas é de se perguntar: para que serve? Para que o Supremo Tribunal Federal possa decidir se, na atual conjuntura, as restrições naturais da Lei de Responsabilidade Fiscal têm espaço no ambiente de Covid-19. Desse modo foram examinados os art. 14, 16, 17 e 24 da LRF, além do art. 114 da LDO federal.
Concluiu-se, na compreensão da mais alta Corte do país, que a não afetação das metas de resultados fiscais, ou seja, o equilíbrio entre o que se arrecada e se gasta, que as medidas de compensação, como aumento ou criação de tributos, seriam impraticáveis neste momento, quando não está presente a previsibilidade dos momentos de naturalidade.
Desta vez, as ações governamentais não têm tempo para estimativas de impactos com o aumento de despesas, tal como previsto no art. 16 da LRF, o que impõe gastos com custos devidamente demonstrados. Até certo ponto e, infelizmente, os tempos são de improvisos. Contudo, deve-se alertar: não se abriu mão, por exemplo, da demonstração da conexão entre as renúncias de tributos com a realidade orçamentária dos diversos entes federados. Cabe aqui a adequação da dose do remédio para o mal que se está cuidando.
Sobre a ADI 6357, conclui-se um duplo objetivo: saúde pública em primeiro plano e socorro econômico às empresas em face da desaceleração do crescimento econômico. Tem-se, por certo, que é impossível cumprir os requisitos da LRF, afastando-se a incidência dos art. 14, 16, 17 e 24 da LRF, para o que se refere exclusivamente ao combate à Covid-19, e enquanto durar o estado de calamidade.
Mas o que tem a ver a Lei 13.979/20 com as flexibilizações da Lei de Responsabilidade Fiscal? Tudo, considerando que os recursos para as compras, que a lei mencionada autoriza que sejam feitas sem licitação ou com trâmites menos burocráticos, virão do orçamento mais dilatado. Uma coisa relaciona-se com a outra.
A Lei 13.979/20 é solução inegável e indispensável para o combate à Covid-19, mas também é o sonho de todos aqueles que têm na fraude contra a administração pública um estilo de vida. Explico. É que a lei cria uma nova espécie de dispensa de licitação, onde há claro intento de preservar – o que é extremamente justo – o bom gestor, aquele que precisa agir com eficiência. Para isto, estabelece disposições bem menos rigorosas que a mal falada Lei de Licitações, que todos chamam de burocrática e deficitária no que diz respeito aos resultados de controle esperados, sobretudo no combate à fraude.
O texto da nova lei, turbinado pela MP 926/20, reconhece de plano a urgência das contratações, mas não é só. Reconhece, também, a boa-fé do gestor nos seus atos (art. 4-B). De fato, a Lei 13.979/20 possui uma redação clara e autoaplicável, embora os Estados e Municípios brasileiros não estejam impedidos, no exercício de sua competência concorrente, de regularem, no espaço geográfico das suas particularidades e interesses, alguns outros aspectos, devendo apenas observar e respeitar o texto da norma geral nacional.
Em meio a tudo isto pergunta-se: mas quando tudo isto vai acabar? Bom, caberá ao Ministro da Saúde este juízo, é o que se extrai do art. 1º da Lei 13.979/20. Mas, até lá, é importante que todos os processos fundados na mencionada lei, deixem muito claro que a contratação tem relação com o combate à pandemia, devendo haver um liame claro. Também não devem sair comprando em demasia. As decisões devem cingir-se de proporcionalidade, ou seja, deve-se comprar apenas o quantitativo necessário para que não haja desabastecimento, bem como os contratos também não devem ser muito alongados.
A lei traz um dispositivo muito interessante, incorporado pela MP 926/20, no sentido da ampliação máxima dos fornecedores neste momento de crise. Trata-se da possibilidade de a administração comprar até de quem não é de confiança, fala-se aqui das empresas inidôneas e impedidas. Contudo, o art. 4º, condiciona esta contratação ao fato de que tal empresa seja a única fornecedora, ou seja, esta será uma contratação cujo processo deve trazer consigo muito boas razões.
A Lei 13.979/20 também traz uma peculiaridade no tocante à publicação. É que estas publicações não serão comuns, exige-se um sítio oficial específico. Não se pode esquecer que sem publicação adequada o ato administrativo está descoberto de eficácia, constatação que poderá, no futuro, gerar severas consequências ao gestor descuidado. Presume-se que tal exigência tem como objetivo facilitar a vida de quem fiscaliza, e até mesmo da participação social no controle, não tendo que se garimpar informações em diários oficiais intermináveis e, em alguns casos, com informações incompletas e obscuras.
No que concerne à questão do preço das contratações, o que se noticia na imprensa é que alguns fornecedores – uma minoria, quero acreditar – entre estes farmácias e estabelecimentos de vendas de artigos hospitalares, de forma sórdida e oportunista, aproveitando-se da disseminação da doença, têm elevado assombrosamente seus preços. Parece esquecerem que suas condutas atentam contra a dignidade, saúde e segurança das pessoas e a proteção dos interesses econômicos até mesmo do país.
Contudo, são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de bens e serviços que estabeleçam obrigações abusivas, iníquas, com desvantagem exagerada para um dos contratantes. É o que se extrai do art. 51, incisos IV e X do Código de Defesa do Consumidor, plenamente aplicável em tempos de Covid-19. Na verdade, trata-se até mesmo de infração à ordem econômica, art. 36 III da Lei n, 12.529/11, atraindo por tudo isso, sanções administrativas, civis e penais.
Desse modo, cumpre ao gestor o devido cuidado, procurando verificar os preços no Portal de Compras do Governo Federal, contratações similares de outros entes da federal, enfim, buscar parâmetros, obviamente sem que isto traga reflexo à eficiência que se impõe ao combate à Covid-19. Também é importante pontuar que a dispensa de pesquisa de preços do art. 4º- E §2º, é uma exceção dentro de uma norma excepcional, e que somente em raríssimas oportunidades será adequada. A regra é a justificativa clara do preço estimado, anda que em um mercado desafortunadamente inflacionado.
Em considerações finais, conclui-se, assentado nas premissas que abriram estas reflexões, que o elevado poder concedido imporá no futuro muitas cobranças, sendo importante que o processo fale por si, evitando que se requeiram informações para além das que já estão nos autos. Na quadra fiscal, o conselho ao gestor é que fique atento à posologia do remédio; que não tome dose maior que a necessária, pois, parafraseando Paracelso, a diferença entre o remédio e o veneno é tão somente a quantidade.
ANDRÉ LUIZ DE MATOS GONÇALVES
É Graduado no Curso de Comunicações pela Academia Militar das Agulhas Negras (1999) e em Direito pela Universidade de Fortaleza (2005). É doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e mestre pela Universidade Federal do Tocantins, em parceria com a Escola Paulista de Magistratura (EPM). Foi reitor da Universidade do Tocantins (UNITINS) e professor universitário de Direito Constitucional. Foi procurador efetivo do Estado do Tocantins e atualmente é conselheiro titular da Segunda Relatoria do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins. É sócio-fundador do Instituto de Direito Aplicado ao Setor Público (IDASP).