— Tá onde?
— Apê.
— Chegando mando mensagem.
— Não demore, pelo amor de Deus… Tô nervoso…
— Calma!
Fechou o WhatsApp e tornou a mão ao volante. Sabe que é proibido dirigir e digitar, mas, comparada à encomenda que dali a instantes ocuparia assento no carro, uma infração de trânsito é coisa pouca. Buzinou e o pequeno retângulo abriu-se. Dois olhos pretos e sombrios surgiram, vasculharam de um lado a outro e, por fim, o arrostaram através do parabrisa. Esquadrinharam-no por intermináveis segundos, após os quais o portão, rolado com força, ganhou velocidade e foi engolido pelo muro. A camiseta do segurança amarfanhou-se com o impulso, desnudando o .38. Engrenou a marcha e avançou, mas agora o mal-encarado evitou fitá-lo diretamente. Assistiu pelo retrovisor o sujeito jogar a chapa de aço lisa de volta sobre o trilho.
Intramuros, sempre sentia uma torrente de alívio tomar-lhe o corpo. Deixou o carro sob o pequizeiro e seguiu em direção à porta blindada, onde outro segurança, sentado à banqueta e absorto no celular, levantava a página da rede social com o dedão. Moveu a cabeça indolentemente quando o visitante pisou nas pedras. Mais simpático, esboçou um leve sorriso e apertou o interfone.
— O Dançarino — uma referência ao apelido ridículo que lhe deram no centro de operações, só porque o hoje seu chefe vira-o num remelexo desengonçado no forró. Nunca aprendera a se movimentar nas pistas. Agarrado a alguém, então, perdia-se todo. O homem engasgara-se de tanto gargalhar com a cena que considerou burlesca e, quando o recrutou para o serviço, pôs esta alcunha na planilha.
Clack!, fez a porta blindada.
O segurança retesou os músculos para abri-la. O ambiente sempre lembrava-lhe uma sala da Nasa ou algo do tipo. Em meio a muito branco e muita luz, três pessoas de luvas e máscaras mergulhavam cédulas em máquinas de contar dinheiro. Outra percorria as baias coletando os maços.
Ao fundo foi recebido pelo largo sorriso simpático da secretária de dentição luzidia e um rosto em que as partes harmonizavam-se perfeitamente.
— Como vaiiiii… — ela alongava o “i”.
— Bem — devolveu com a mesma extensão labial.
Apertou o interfone.
— Hum? — fez a voz lá dentro.
— O Dançarino.
A secretária seguiu à frente e ele atrás, contemplando nos poucos metros do corredor, sob um ângulo privilegiado, como todas as outras partes também se assentavam com perfeição.
Clack! Entrou.
Mal havia atravessado, a porta foi travada novamente às suas costas.
— Dançarino! — o chefe recebeu-o, com movimentos serelepes simulando, sentado, um arrasta-pé, e disparou em seguida uma risada ardida. De raciocínio sempre muito lógico e preciso, passou a metralhar as palavras como se sonorizasse fórmulas matemáticas. Parou repentinamente os disparos de equações formadas por vocábulos ao final de uma história que julgava engraçada e franziu o cenho, com um risinho ainda ecoando fino.
— Quem? — a deixa costumeira.
— Amarelo.
— Está cumprindo direitinho?
— Conforme conversado…
— Do mesmo jeito? — riu, matreiro.
— Como sempre… Amarelando.
O chefe chacoalhou-se todo, arqueou a cabeça para trás e enrubesceu a ponto de quase engasgar como naquela vez no forró. Depois impulsionou a cadeira executiva de couro, que deslizou num tinido surdo e repetitivo até a parede atrás da mesa, onde seis portas de aço cobriam do chão ao teto. Abriu uma delas com a chave minúscula que tirou do bolso da calça e o outro pôde contemplar, de olhos cintilantes, compartimentos com montanhas incontáveis de cédulas sobrepondo-se de forma muito organizada. O superior acomodou no colo dez maços gordos, surfou novamente em seu assento até a mesa e, de uma gaveta, tirou o malote. Colocou o dinheiro, lacrou-o e jogou-o.
— Vai!
Escutou o clack!, passou pelas baias com o lap-lap-lap vibrante das máquinas e o coletor enlaçado a feixes robustos de reais. Outro clack! Empurrou a muito custo a pesada porta blindada e sorriu ao respirar ar puro.
O mal-encarado arrastou o portão sobre o trilho. Acelerou lentamente em direção à rua, vendo o .38 marcando a camiseta do segurança. Deu com a mão, mas foi ignorado pelo sujeito, que, rapidamente, sumiu atrás da cortina de aço vomitada pelo muro.
****
Como em todas as vezes, os minutos que antecedem a chegada do malote são os mais tensos. Corre a cada minuto à janela, a qualquer ronco de motor, e o intestino desarranja. Culpa a maldita televisão por esta ansiedade doentia. Só fala de operações da Polícia Federal, Polícia Civil, condução coercitiva, delação premiada, algemas, prisão… Não aguentaria um só dia de cadeia. Meu Deus! Como foi entrar nessa! O estômago grunhindo… Bom aspirar o ar com força em grandes porções. Alguém (ou mãe, ou tia, ou prima, ou avó) falou algum dia que isso ajudava.
Que sirene é esta? Do sétimo andar tem visão privilegiada de toda a avenida. Um movimento suspeito podia ser visto de longe. Ambulância! Que uma ambulância faz nesta região? Não é via para o hospital… Armação? Denúncia anônima? Grampo no celular? Está sendo ouvido, gravado, espiado? Nunca fala nada com nada no maldito aparelho… Nem na chamada por zap, que dizem ser totalmente antigrampo… Meu Deus, que situação! Alguém pode ter sofrido um enfarte, um AVC, ou um acidente ali por perto. Tomara.
Está demorando. Foi interceptado?
Um carro em altíssima velocidade… E agora? Maldito apartamento que não lhe dá nenhuma opção de fuga. Só os elevadores ou a escada. A uma hora dessas, os andares podem estar tomados por agentes especiais. E ainda há as janelas. Vá que desçam por cordas, como nos filmes, e irrompam no quarto, rolando pelo chão com fuzis de mira a laser. Dá-lhe uma repentina falta de ar só de imaginar. Estômago grunhindo novamente… Aspire, aspire, aspire…
Tinha que construir logo naquele condomínio fechado. Terreno caríssimo, pago à vista, no cash, com uns maços que recebeu naquele dia mesmo. Também ficaria mais vulnerável. Vá que invadam com sirenes uivando histéricas, cerquem a casa com armas de todos os tipos e tamanhos, megafone esgoelando para ele sair com as mãos para cima. Os vizinhos… Que vergonha! Algemado na frente da mulher e das crianças… Que vergonha!
No apartamento, pelo menos, se não tiver outra alternativa, pode pular. Do sétimo andar seria fatal. Não passaria um só dia na prisão. Mas morrer? Olhou para baixo e o mundo girou. E a dor insuportável até a vida se esvair vagarosamente? Sangue golfando pela boca e lacerações horripilantes que sequer teria coragem de ver. Pernas e braços quebrados, fraturas expostas… Oh, meu Deus! Onde foi se meter!
Por que não chega logo? Aconteceu algo. Esse pressentimento…
Mas tem o lado bom. Jamais imaginaria ganhar tanto dinheiro. Contemplar o apartamento belissimamente decorado o alivia. Os carros potentes, viagens ao exterior, apartamento na praia, aplicações financeiras… Enfim, o risco vale. Só este momento… Ah, meu Deus! Vontade de sumir, de entrar embaixo da cama! Vontade não sabe nem de quê…
Mais um carro… Putz! SUV. Preta. Giroflex. Senhor! Foi descoberto… E agora! E agora! E agora! Calma! Calma! Calma! Chorar não vai resolver… Bom espiar na amurada da varanda. Essa situação está deixando-o louco! Até falando sozinho… Ergueu um pouquinho só a cabeça, o suficiente para os olhos avistarem o estirão da avenida. É uma viatura mesmo… Pai Eterno! Vem na direção do prédio a toda velocidade… Socorro! E tentar fugir?… Mas como? Oh, curiosidade! Espreita de novo. Já está bem próxima. Agentes já devem estar por todo o condomínio e solicitaram reforços… Senhor! Que fazer? Meu Deus! Mas… Espera! Giroflex desligado? Passou! A outra varanda… Passou também! Passou! Passou! Yes! Yes! Yes! Virou em direção ao parque. Livre! Não foi desta vez! Ufa…
Que demora!
O assobio chato do zap. Até que enfim!
— Chegando. Desce…
— Que demora! Descendo…
Desespero, a espera pelos elevadores. Os três parados em andares diferentes. Os homens aqui dentro? Agentes especiais? Bomba de gás, algemas… Deus!
Plim!
O elevador do meio. É agora! Olhos cerrados, braços esticados para as algemas… Assim deve ser menos dolorido. Não verá o metal cromado trancando seus delicados e cevados pulsos alvacentos (será que aperta muito?). Ainda bem que a mulher e as crianças estão fora para não assistirem toda essa humilhação.
— Está com algum problema, meu filho?
A velhinha sistemática do 704.
— Só um cisco no olho, Dona Velma… Mas que bom que é a senhora! Estou muito feliz em vê-la!
Parece que ouviu da senhorinha “sujeito meio doido” ou algo do tipo. O que importa é que seu malote está próximo. Parece que vai dar tudo certo.
****
Amarelo, seu nome na planilha, atravessou o estacionamento anexo ao hall de entrada do prédio. Apesar de só uns vinte metros, pareceu-lhe uns bons quilômetros. Olhava de lado a lado, perscrutava cada movimento. Para deixar o condomínio, outro inconveniente: o sistema eclusa de segurança. Dentro da gaiola, com grades em todo o seu entorno, já antevia, trêmulo, sua vida na prisão. Uma eternidade entre o fechamento de uma porta e a abertura da outra.
Atormentou-se ainda mais quando o homem de roupa azul e amarela, supostamente dos Correios, aproximou-se. Sentiu a pressão subir e as pernas faltarem. O agente – não sabia se dos Correios mesmo ou da Polícia – não lhe sorria. Apenas encarava-o com olhos frios, numa obliquidade estranha, sob a pala rebaixada do boné. Com uma grande bolsa a tiracolo, na qual Amarelo avaliou caber facilmente uma submetralhadora, abeirou-se mais e mais da gaiola, num semblante seco, sem um ricto sequer, uma piscadela, um mínimo sinal de alento que fosse. Bagas gélidas de suor cascateavam pela carantonha daquele sujeito encurralado pelas grades, quando o estranho ergueu a mão num movimento lento, ameaçador, enigmático, angustiante, que fazia crer se desenhar na sua direção, mas, por fim, acabou foi apertando o interfone.
Bam! Finalmente, a porta de trás fechou-se.
Ganhou a rua como o claustrofóbico deixa a sufocante máquina de ressonância magnética. Tragava o ar em porções glutônicas.
— Entre — ordenou Dançarino, logo que encostou o carro em frente ao condomínio.
Amarelo praticamente pulou no banco do carona e esticou a cara grande e temerosa para a traseira do veículo.
— Acelera! — exigiu, aflito, sem olhar para o outro.
O motorista riu.
— Relaxa…
— Relaxar como? Viu se vinha alguém atrás de você? Algo suspeito? Qualquer coisa estranha? Garanto que não… Você é zen demais para meu gosto…
Dançarino fazia a entrega havia meses e sempre irritava-se com o desespero de Amarelo — esse medo exacerbado, claro, originara o apelido na planilha, que o ocupante do banco ao lado desconhecia.
— Vamos! Você quer me matar? Pisa! — levou as duas mãos ao coração, aprontando-se para o enfarte que chegaria em milésimos de segundos.
— Não tem ninguém. Relaxa.
Para serenar o ambiente, entrou no tema que sabia pacificar Amarelo.
— Tenho ótimas notícias. O pedido do mês passado foi atendido…
Um sorriso pueril repentino desenhou-se no rosto do carona e viaturas, giroflex, megafones, algemas, fuzis, conduções coercitivas, delações e prisão dissiparam-se instantaneamente de sua fértil e acovardada imaginação.
— Vintão a mais? Sério! — riu-se. — Oh, beleza!
— O chefe puxou dez maços este mês…
— Que maravilha! Deixa eu ver, deixa eu ver…
Agora foi a vez de Dançarino derrubar o cenho.
— Aqui não… Vamos dar um giro rápido…
Ligou o carro e partiu calmamente, como se nada de incomum ali ocorresse. O homem dos Correios já ia longe em sua moto.
Só alguém muito atento perceberia Amarelo, que já não amarelava naquela altura, jogando-se para o banco de trás. Mas como não havia nenhum movimento na rua, ninguém testemunhou nada disso e tudo ocorreu conforme o previsto.
Mais uma entrega bem-sucedida.
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.)