Os políticos aproveitaram a grita por moralização da vida pública e acabaram com a alegria das eleições. Nada de bonés, camisetas, brindes e shows. O argumento era de que, sem esses acessórios, as campanhas se tornariam mais enxutas e, por conseguinte, mais baratas. Assim, decantavam, a democracia se fortaleceria porque as condições de disputa seriam mais igualitárias.
Essa era a versão, mas a realidade foi outra. Nunca tivemos campanhas tão caras como depois dessas mudanças. Ou seja, tiraram delas o caráter festivo e canalizaram muitos milhões a mais para a produção de programas de TV. Sem falar que outra parte gorda dos recursos é destinada por caminhos tortuosos para as mãos de líderes. Tornaram as eleições anódinas para que tivessem muito mais dinheiro para mascarar o candidato e para líderes convencerem as pessoas a votar em seus financiadores. Basicamente foi isso que ocorreu.
Antes as campanhas eram mesmo festivas e havia clima de eleições nas ruas desde as convenções até o fatídico dia do encontro do eleitor com a urna. Cada um com boné e camiseta de candidato que não era necessariamente o seu. Na verdade, havia aqueles que recolhiam os brindes de todos os postulantes. Em quem de fato se votaria é outro assunto.
Para nós, moleques, era época de renovarmos os uniformes do time. Na entrega, o candidato a prefeito ou a vereador falava com eloquência e nenhum de nós prestava a mínima atenção. Nossos olhos estavam pregados no vestuário que receberíamos em instantes. Era uma maravilha tirar a camiseta, o short e os meiões dos plásticos.
Então íamos para o campeonato que levava o nome de outro candidato, que, em troca de patrocinar troféus e medalhas, tinha direito à homenagem como se fizesse por merecer. Geralmente, nem sabíamos quem era a ilustre personalidade, apenas que iríamos estrear uniformes novos numa competição de verdade, até com troféus e medalhas. Via o orgulho estampado na cara dos amigos, todo mundo calçando as chuteiras com fardamento impecável e entrando em campo com o peito estufado.
Candidato forte tinha mais camisetas e bonés com seu nome e número espalhados pelas ruas. Era o termômetro. Viravam vestimenta de trabalho, e o cidadão economizava a roupa de ir nos sábados e domingos aos bailes e à igreja. Minha mãe usava a camiseta em sua rotina de limpeza da casa e nós nos campinhos de terra. Quatro ou cinco anos depois das eleições, ainda víamos as pessoas com aquelas peças, já puídas, nas obras e feiras.
Numa época em que tudo era muito difícil e caro, a oportunidade de ver os maiores artistas, e de graça, nos fazia torcer para chegar logo o período de eleições, ou “da política”, como se dizia e ainda se diz. Os grandes nomes da música, os rostos que só conhecíamos da TV e as vozes que ouvíamos nos rádios – de Milionário & José Rico a Leandro e Leonardo, Chitãozinho & Xororó, Zezé de Camargo & Luciano, só para ficar nos sertanejos. Vê-los de perto era como encontrar um ET que desceu em nossa pequena cidade.
Os artistas regionais tinham trabalho garantido e estavam em todos os palanques. Dia de showmício era de muita alegria e festa. Pipoqueiros e ambulantes em geral faziam sua renda extra. Vinham os discursos, o momento democrático, cívico, de o candidato falar de suas propostas. Quase sempre aplaudido, algumas vezes vaiados. Depois da falação, dá-lhe música, mais alegria e festa para o povo. Praticamente um mês de shows quase diários, numa cidade em que eventos culturais eram uma raridade. Íamos de um bairro a outro, cada vez um candidato diferente, mas o som sempre de qualidade.
Também representava a oportunidade de ganhar um troquinho na boca-de-urna. Os candidatos a vereador arregimentavam todos que podiam para a última investida em busca do voto. Foi aí que fiz minha estreia na política aos 12 anos, em 1982. Concorrendo pelo PDS, o amigo de meu pai convocou e lá fomos seu Heitor, meu irmão do meio e eu, sem qualquer paixão ideológica.
O dia todo na rua, andando pelos colégios eleitorais do centro, com um bolo de santinhos nas mãos, devidamente paramentado com boné e camiseta do nosso candidato. Em determinando momento, um grupo de homens passou por mim e senti um tapa nas costas. Meu irmão ou um amigo, não me lembro, me disse que colaram um adesivo do “prefeito do PMDB” nas minhas costas. Já precocemente desbocado, disparei:
– Tira esse negócio de corno daqui! – e fui arrancando o papel da camiseta.
Só senti um puxão no meu braço e me vi cercado por uns gigantes mal-encarados:
– Quem é corno, moleque? – aí entendi que a mancada era maior: tratava-se do próprio candidato a prefeito do PMDB. – Tome cuidado com o que você fala ou arrebento você e seu pai – avisou-me com o dedo em riste.
Fiquei em silêncio e eles me deixaram. Esperei uma distância segura. Quando já estavam longe o suficiente, ataquei:
– Seu corno!
Eles se viraram e o candidato pedalou como se fosse correr em minha direção. Disparei sem olhar para trás, com a impressão de que havia uma multidão no meu encalço. Passei o resto do dia prestando atenção dos lados e preocupado com meu pai. Meu maior medo era que eles cercassem o velho e lhe dessem um pau. O coitado apanharia sem saber o motivo. Tentava toda hora ver onde ele se encontrava para me certificar de que estava inteiro. Seu Heitor nunca soube dessa história.
Nosso candidato do PSD a prefeito venceu aquelas eleições e comemorei com mais gosto depois de meu entrevero com o homem do PMDB, que muitos anos depois, já na década de 1990, também se elegeu, mas acabou afastado por desvio de recursos do município. Faleceu pouco depois.
Já o amigo de meu pai, nosso candidato a vereador de 1982, perdeu e, por óbvio, nunca nos pagou. Mais uma marca das eleições festivas: tinha que receber antes da votação, ou adeus.
CT, Palmas, 11 de setembro de 2020.