O ano era 1948. O mundo acabara de atravessar sua fase mais sangrenta. Um período que deveria mais jamais será esquecido. Apenas três anos antes tinha acontecido o final da segunda guerra mundial. Guerra esta que ceifou a vida de mais de cinquenta milhões de pessoas. Foi uma época em que o ser humano foi tratado como um “objeto descartável”, no dizer de Hanna Arendt.
Em 1948 o mundo ainda estava em choque. Ainda contabilizava os irreparáveis prejuízos financeiros, sociais, mas principalmente os prejuízos relacionados à valorização humana que este horrível episódio causou à humanidade. Era preciso que algo fosse feito, e de maneira urgente, para resgatar a responsabilidade política e jurídica dos Estados no sentido de implantar uma nova era, que , conforme escreveu Celso Lafer, uma era de Reconstrução dos direitos humanos.
Três anos antes, em 1945, foi criada a ONU (Organização das Nações Unidas), em substituição à fracassada Liga das Nações. Os principais objetivos dessa Organização Internacional, que contava com cinquenta e um países na sua fundação, era justamente o alcance da paz mundial e o respeito à universalidade dos Direitos Humanos. E foi nessa importante Organização que nasceu a ideia de se editar um documento que tivesse o apoio de todos ou da grande maioria de seus membros voltado para o reconhecimento dos principais direitos inerentes à garantia da dignidade humana em qualquer parte do planeta. Era uma resposta clara e inequívoca às atrocidades cometidas nas duas grandes guerras mundiais. O mundo precisava de uma bússola política e jurídica que, amparada num compromisso ético de todos os governantes do mundo, seria um guia para o alcance do respeito aos direitos básicos necessários à garantia de uma dignidade justa a todos.
E foi com esse desiderato que, no dia 10 de dezembro de 1948, foi promulgada na ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi a primeira grande demonstração de que quando todos que detêm o poder se unem em prol de um objetivo comum é possível alcança-lo. Se é da mente dos homens que nascem ideias que podem destruir o mundo é da mente desses mesmos homens que devem nascer as soluções para os graves problemas que assolam a humanidade.
A DUDH é composta por trinta artigos que contemplam todas as classes de direitos humanos que viabilizam uma vida com dignidade e respeito para todos, como o direito à vida, à liberdade, à saúde, à educação, à segurança, a proibição de qualquer forma de tortura, o direito ao trabalho, à cultura, direitos políticos e muitos, muitos outros.
No dia 10 de dezembro de 2024, dia mundial dos direitos humanos, a DUDH completa seus setenta e seis anos de existência. Muitos avanços foram conquistados, uma vez que este documento serviu de base jurídica e inspiração para a elaboração das principais Constituições dos países democráticos como é o caso do Brasil.
Porém, parafraseando o filósofo Norberto Bobbio, o grande problema do mundo hoje em relação a Direitos Humanos não é sua previsão e sim sua efetividade.
No entanto, os direitos humanos têm apenas paradoxos a oferecer. Apesar das declarações sobre o direito universal à vida, todo dia chegam notícias atrozes de Kiev, do Congo, da Faixa de Gaza, do Líbano e por último da Síria. Apesar das declarações piedosas sobre a igualdade e a dignidade humana, a distância econômica entre os ricos e os pobres apresenta como a maior na história da humanidade.
Milhões e milhões morrem de fome todos os dias, muitos não sabem o que é saneamento básico, o sistema de saúde está falido e a preocupação das grandes potências se relaciona com as riquezas minerais.
No mundo todo, 733 milhões de pessoas estavam na condição de subnutrição, apenas em 2023, segundo a edição 2024 do Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024). É como se uma em cada 11 pessoas no mundo passasse fome. De acordo com um novo relatório da Oxfam, publicado no Dia Mundial da Alimentação, entre 7.000 e 21.000 pessoas estão morrendo de fome por dia em países afetados por conflitos[3].
Costas Douzinas, em sua obra “O fim dos direitos humanos” menciona que, quando o abismo entre as declarações missionárias sobre igualdade e dignidade e a realidade sombria da desigualdade obscena torna-se aparente, as falsas promessas de humanitarismo vão levar a incontroláveis tensões e conflitos. Soldados espanhóis encontraram os exércitos de Napoleão gritando “Abaixo a liberdade!” Não é difícil imaginar as pessoas que satisfaçam as “forças de paz” dos Novos Tempos com gritos de “Abaixo aos direitos humanos!”
Infelizmente isto acontece em nosso país, onde negamos à população vulnerável os seus direitos básicos para uma vida com dignidade.
No entender de Antonio H. Aguilera Urquiza[4], no contexto de um mundo cada vez mais global/local, cada vez mais plural e singular, torna-se imprescindível recolocar o papel discursivo e político dos direitos humanos. Percebe-se a necessidade crítica de um diálogo construtivo, intercultural em diferentes níveis que levem a conhecimentos e valores alternativos no que diz respeito à uma convivência humana pautada pela dignidade e justiça.
Portanto, não há tempo para acomodação. Sempre é tempo de reivindicarmos de nossos governantes medidas efetivas que garantam o respeito e principalmente a efetivação de todos os direitos humanos previstos em nossos diplomas legais, afinal direitos humanos nunca foram oferecidos por quem é responsável pela sua efetivação, ao contrário, sempre foram conquistados através de lutas, reivindicações e pelo grito de justiça que emanaram de muitos heróis sociais que nos antecederam. Continuemos com esse ideal: Direitos Humanos hoje e sempre para todos.
MARCELO FALCÃO SOARES
Oficial Superior (Coronel) da reserva da Polícia Militar do Tocantins. Ex-Presidente do Naturatins, Ex-Chefe do Estado Maior da PMTO. Bacharel em Direito. Especialista em Direitos Humanos, inteligência Emocional e metodologia e didática do ensino superior. Palestrante. Conferencista e professor em cursos internos da Polícia Militar. Agraciado com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos pela Presidência da República na Categoria Segurança Pública (2003).
LUIZ FRANCISCO DE OLIVEIRA
Advogado. Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT, 2019). Especialista em Direito em Administração Pública. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Político e Eleitoral. Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico; Ex-Advogado da União (AGU); Promotor de Justiça Aposentado do Ministério Público do Estado do Tocantins; Ex-Integrante do Grupo de Trabalho Racismo e Igualdade Racial da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC/PGR; Fundador do Escritório Luiz Francisco Advogados. https://luizfranciscoadvogados.com.br/.
[3] Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/a-fome-provocada-pelos-conflitos-esta-matando-cerca-de-21-000-pessoas-por-dia-em-todo-o-mundo/.
[4] Boaventura e os direitos humanos: a contribuição das teologias políticas aos direitos humanos. RIDH | Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-148, jun. 2014.