Logo após o advento da Emenda Constitucional n° 111, de 28 de setembro de 2021, publicamos um artigo de opinião acerca do instituto da fidelidade partidária, detalhando as hipóteses ensejadoras de justa causa para desfiliação, com relevo à novel disposição autorizadora, qual seja: carta de anuência emitida pela agremiação partidária com a finalidade de desligamento do trânsfuga.
Ato contínuo, ao início da vigência da referida disposição Constitucional, inúmeros casos concretos aportaram à Justiça Eleitoral, notadamente mandatários pleiteando o reconhecimento de justa causa, isso sustentados em cartas de anuências emitidas, na maioria das vezes, por Presidentes de Órgãos hierarquicamente inferiores.
Isto posto, de plano um questionamento se faz presente: É possível aos Partidos Políticos estabelecer regras para a emissão das cartas de anuência?
A previsão acerca do instituto da fidelidade partidária foi introduzida no ordenamento jurídico, através da Emenda Constitucional nº 01 de 1969, sendo suprimido anos após pela Emenda Constitucional nº 25 de 1985.
O tema voltou a possuir previsão, através do artigo 17 Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, todavia, sem qualquer disposição acerca de sanções nas hipóteses de inobservância à fidelidade partidária, motivo ensejador das inúmeras mudanças de siglas partidárias pelos mandatários.
O Supremo Tribunal Federal, no ano de 1989 julgou o Mandado de Segurança nº 20927/DF, firmando o entendimento de que o mandato pertencia ao parlamentar, sendo admissível, pois, a migração partidária, sem que com isso tivesse o prejuízo da perda do mandato.
Passados vários anos, em 2007, o STF julgou os Mandados de Segurança nº 26602, 26603 e 26604, firmando novo entendimento sobre o tema, no sentido de que o mandato pertence à agremiação partidária e não ao eleito, deixando assente, inclusive, a possibilidade de perda do cargo nas desfiliações sem que houvessem justa causa.
Após o julgamento dos MS’s mencionados alhures, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução nº 22.610/2007, disciplinando o processo de perda de cargo eletivo, bem como as disposições sobre a justificação de desfiliação partidária, considerando que não perderia o mandato nas hipóteses de incorporação ou fusão do partido, criação de novo partido, mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário e grave discriminação pessoal.
Em que pese a previsão das hipóteses de justas causas para a desfiliação partidária, isso em ato administrativo do Tribunal Superior Eleitoral, somente em 2015, houve disposição legislativa, com o advento da Lei nº 13.165, em que inseriu o art. 22-A na Lei dos Partidos Políticos (9.096), constando as hipóteses pelas quais justificam a troca de partido, quais sejam: mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, grave discriminação política pessoal e mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente.
Contudo, em nenhuma das disposições normativas acima mencionadas foi prevista, como hipótese de justa causa, a situação em que o próprio partido político concorda com o desligamento do filiado, isso através da emissão da carta de anuência.
Nesse diapasão, em 28 de setembro de 2021, foi publicada a Emenda Constitucional nº 111, inserindo o § 6º no art. 17[1], constitucionalizando, pois, a carta de anuência como ensejadora de justa causa para o desligamento da agremiação, sem prejuízo do respectivo mandato.
Todavia, ante à redação Constitucional sobrevieram alguns questionamentos dentre eles: a) qual órgão partidário seria o competente para a emissão da carta de anuência, Municipal, Estadual ou Nacional? b) a validade da emissão da carta de anuência estaria condicionada tão somente com a autorização do Presidente do órgão partidário ou à maioria dos membros reunidos em assembleia? c) o parlamentar estaria vinculado ao nível de seu cargo com o respectivo órgão partidário e/ou hierarquicamente superior?. Exemplificando: um Deputado Estadual somente poderia requerer a carta ao órgão estadual e/ou nacional?
As referidas indagações não permanecem, tão somente, no plano teórico, vez que possuem efeitos práticos e em algumas vezes deletérios às balizas do sistema proporcional.
Pode exemplificar a hipótese de determinado Vereador, com interesses exclusivamente pessoais, requerer a carta de anuência ao Presidente de um Órgão Municipal (este alinhado politicamente com aquele), contudo, os órgãos superiores (estadual e/ou nacional) rechaçam o referido ato liberatório do trânsfuga.
Considerando que o mandato eletivo no sistema proporcional pertence ao partido e não ao candidato, há premente necessidade de uma proteção para que não ocorra o desvirtuamento da novel regra Constitucional, bem como ao sistema proporcional.
Nessa esteira, para se alcançar esse resguardo, as agremiações podem se socorrer do princípio da autonomia partidária, conforme previsto no art. 17, §1º[2].e proceder às alterações em seus estatutos, estabelecendo regras e condições para a emissão da carta de anuência.
Destarte, a maneira para que não ocorra ao desvirtuamento do sistema proporcional, cabe aos partidos realizar alterações em seus estatutos disciplinando regras para a emissão das cartas de anuência, podendo exemplificar, alternada ou cumulativamente: a) A validade da carta de anuência deverá ser referendada pela maioria dos membros do órgão de nível com o respectivo mandado do trânsfuga e/ou hierarquicamente superior; b) a validade da carta de anuência expedida por determinado Presidente de órgão de nível com o respectivo mandado do trânsfuga deverá ser referendado pelo órgão hierarquicamente superior e c) o Órgão Nacional deteria a competência para a emissão das cartas de anuência.
LEANDRO MANZANO SORROCHE
É advogado, Pós Graduado em Direito Eleitoral, Público, Tributário e Estado de Direito e Combate à corrupção, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral – ABRADEP, do Instituto de Direito Eleitoral do Tocantins – IDETO e da Comissão de Direito Eleitoral OAB/TO.
[1] § 6º Os Deputados Federais, os Deputados Estaduais, os Deputados Distritais e os Vereadores que se desligarem do partido pelo qual tenham sido eleitos perderão o mandato, salvo nos casos de anuência do partido ou de outras hipóteses de justa causa estabelecidas em lei, não computada, em qualquer caso, a migração de partido para fins de distribuição de recursos do fundo partidário ou de outros fundos públicos e de acesso gratuito ao rádio e à televisão.”
[2] § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.