A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid ouviu nesta segunda-feira, 18, o relato de pessoas afetadas pela pandemia. Em discursos emocionantes, os depoentes contaram aos senadores como perderam pais, marido, filho, irmã e cobraram justiça.
Durante as falas, houve também uma série de críticas ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro – desde o início da emergência sanitária ele tem promovido aglomerações e criticado o uso de máscaras e os imunizantes – e declarações a favor da campanha de vacinação anti-Covid.
“A dor é grande, mas a vontade de justiça é maior. Estou aqui hoje para representar as várias famílias que passaram pela dor que passamos. É por isso que estou tão emocionada de estar aqui. São vidas, sonhos, histórias encerradas por tantas negligências. E nós queremos justiça. O sangue de cada uma das vítimas escorre nas mãos de cada um que subestimou o vírus”, afirmou Katia Shirlene Castilho dos Santos, que perdeu os pais para a Covid.
Segundo ela, o pai contraiu a doença em março deste ano, uma semana antes de poder receber a vacina. O homem faleceu enquanto a esposa estava internada, em São Paulo, em um hospital da rede Prevent Senior. “Ele não teve nenhuma despedida digna e isso aconteceu com muitos brasileiros”, disse ela, ressaltando que fez do “luto uma luta”.
Kátia contou que sua mãe, de 71 anos, foi tratada com o chamado kit covid após uma teleconsulta feita pela operadora. “Não fizeram nenhum exame e acabaram mandando o kit covid”, disse.
“Como você vai falar para uma idosa de 71 anos que confia no convênio, que aquele remédio que o médico mandou para ela, para cuidar dela, não estaria fazendo nada?”, disse. Entre outras várias denúncias, a operadora, investigada pela CPI, é acusada de obrigar médicos a prescrever medicamentos sem eficácia comprovada para tratamento de pacientes com coronavírus. O plano de saúde nega as acusações.
Outra experiência ouvida pelos senadores foi a do taxista Márcio Antônio do Nascimento da Silva, que contou sobre a perda do filho Hugo Dutra do Nascimento Silva, de 25 anos. Hugo foi atendido em uma unidade de pronto-atendimento (UPA) em Copacabana, no Rio de Janeiro, transferido para um hospital, intubado por 15 dias, mas não resistiu.
Com a voz embargada, Silva narrou os últimos dias de vida de seu filho, quando ele começou a sentir cansaço e falta de ar. O taxista disse ter acompanhado Hugo no hospital até o seu falecimento, e lembrou com pesar do dia em que teve de reconhecer o corpo do filho.
“A última vez que o vi, ele estava dentro de um saco”. O depoente criticou declarações de Bolsonaro sobre a Covid-19 e a demora do Brasil para a aquisição de vacinas. Segundo ele, o que dói não é apenas o luto, mas o que veio após a morte de Hugo: “O deboche, a irracionalidade das pessoas, inclusive de amigos”.
“Eu daria a minha vida para o meu filho ter chances de ser vacinado”, disse.
O taxista lembrou aos senadores como foi o episódio em que foi flagrado na Praia de Copacabana, em abril de 2020, recolocando as cruzes que homenageavam as 100 mil vítimas da doença à época – colocadas por uma organização não governamental – que haviam sido derrubadas por outra pessoa.
Silva contou que, na ocasião, foi agredido verbalmente. “Quando descobriram que era apenas um pai que estava triste pelo seu filho, foi um constrangimento geral”, disse.
Para ele, o início da CPI da Pandemia foi um alívio. Silva destacou que sentiu alento em pensar que nem todas as autoridades diriam “e daí” para os óbitos em decorrência da pandemia. Para mim, não importa o partido político dos senhores, o que importa é que meu Hugo não volta mais, mas tenho outros filhos e quatro netinhos”, afirmou.
Colapso em hospitais
Por sua vez, a enfermeira obstetra Mayra Pires Lima contou como foi trabalhar no Amazonas durante o colapso enfrentado pelo estado no início deste ano, em meio à falta de insumos e oxigênio hospitalar para tratar pacientes da doença.
Emocionada, a enfermeira contou que hoje é responsável por quatro sobrinhos, filhos de sua irmã, que morreu durante o colapso da saúde em Manaus.
À época do falecimento da irmã, Mayra disse que as crianças menores, gêmeas, tinham apenas 4 meses de vida. “Muitas vezes eu assumia a assistência de saúde da minha irmã porque nós tínhamos cinco técnicos de enfermagem para cuidar de 80 pacientes graves”, destacou Mayra aos senadores.
“Só em Manaus nós temos mais de 80 órfãos da Covid. Só na minha família são quatro”, destacou, questionando o que está se fazendo por essas crianças e por essas famílias.
Mayra acrescentou que também foi infectada pelo novo coronavírus e perdeu outro irmão para a doença. “Um pouco de bom senso e um pouco de humanidade por parte dos gestores teriam dado um rumo diferente à pandemia no Amazonas”, disse.
De acordo com ela, durante todo o ano de 2020, os profissionais de saúde com quem trabalha tiveram que comprar seus equipamentos de proteção individual. Ela agradeceu aos amigos que em várias ocasiões doaram os que ela usou.
No Senado, a enfermeira comparou a situação dos profissionais de saúde a “um cenário de guerra”. “No Amazonas, tivemos uma situação bastante difícil. Quando eu me formei, tinha grande sonho de ajudar em outras calamidades. Hoje, eu falo que eu vivi uma guerra, atendi pacientes às vezes sem proteção nenhuma”, declarou.
Mayra lembrou ainda que no Amazonas a Covid-19 vitimou “ótimos médicos e obstetras”. “Perdemos colegas pra depressão e suicídio”, destacou.
Segundo ela, somente entre enfermeiros, foram 82 óbitos, sem contar os que ficaram com sequelas. “A gente via postagens sobre os nossos heróis. Nós não queremos parabéns, queremos valorização”, disse ao defender a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2564/2020, que visa aumentar o piso salarial dos profissionais da enfermagem.
Em resposta ao pleito, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) disse que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), comprometeu-se a pautar a matéria “o mais breve possível” no plenário da Casa. A recomendação de aprovação da proposta também estará no relatório final do senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Em outro depoimento, Giovanna Gomes Mendes da Silva, de 19 anos, que perdeu a mãe e o pai por complicações da doença em um intervalo de 14 dias, também falou aos senadores das dificuldades que enfrenta. Hoje a jovem, que tem a guarda da irmã mais nova, de 10 anos, diz passar por problemas psicológicos e financeiros. “Antes, vivia uma vida de alegria com alguns momentos de tristeza. Hoje, vivemos tristes, e uma ou outra coisa nos deixa alegres”, destacou.
A adolescente lembrou aos senadores que, antes de ser intubada, sua mãe chegou a passar uma noite inteira internada com uma máscara de oxigênio furada e que acredita que isso tenha agravado a situação de saúde dela. “Trocaram, mas de qualquer forma o quadro dela se agravou.” Dois dias depois, seu pai foi internado. O homem já havia se recuperado da Covid-19, mas tinha um câncer, que segundo ela, após a doença, se agravou muito. “A gente não teve nem tempo de sofrer pela minha mãe, pois não podia ficar chorando na frente do meu pai”, contou a jovem. “Perdemos as pessoas que mais amávamos.” Sem os pais, Giovanna relatou que se mantém e cuida da irmã com ajuda de doações de parentes da mãe que contribuem “com o pouco que têm”. “Passamos a não ter nossos dois pilares e também não ter quem nos ajudasse”, disse.
Propostas legislativas
Como resultado dos trabalhos da comissão, os senadores também adiantaram que vão apresentar uma proposta legislativa para que os órfãos de responsáveis vitimados pelo novo coronavírus recebam um auxílio financeiro de um salário mínimo até completarem 21 anos de idade.
A CPI vai sugerir também a inclusão da Covid-19 na relação de doenças que ensejam aposentadoria por invalidez quando a perícia médica atestar.
Próximos passos
Nesta terça-feira, 19, os senadores devem ouvir o último depoimento antes da leitura do relatório final dos trabalhos, marcada para esta quarta-feira, 20: o representante do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Elton da Silva Chaves, que integra a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão consultivo do Ministério da Saúde.
Ele será cobrado a dar explicações sobre a última reunião da Conitec que retirou de pauta um documento que pretendia vetar o uso de medicamentos ineficazes no tratamento contra a Covid-19 no Sistema Único de Saúde (SUS).
A votação do relatório final do colegiado foi reagendada para o dia 26. O relator Renan Calheiros (MDB-AL) deve propor a responsabilização de Bolsonaro por pelo menos 11 crimes. (Com Agência Brasil)