Quis custodiet ipsos custodes? é uma frase em latim do poeta romano Juvenal, traduzida como “Quem há de vigiar os próprios vigilantes?” e outras formas como “Quem vigia os vigilantes?”, “Quem guardará os guardiões?”, “Quem vigia os vigias?”, “Quem fiscaliza os fiscalizadores?”, ou similares.
O que movimentou a ultima semana, em especifico no dia 29 de abril, foi a decisão do Ministro Alexandre de Moraes suspendendo a nomeação do Delegado Federal Ramagem pro cargo de Diretor- Geral da Policia Federal, em ação movida pelo PDT (Partido Democratico Trabalhista), admitindo que tal nomeação fere em especial, o princípio da impessoalidade, moralidade, basilar da administração publica disposto no artigo 37 da CF e o interesse publico. Por outro lado, o Presidente da Republica Jair Bolsonaro no uso das atribuições disposto na Lei 13.047/14 “ Art. 2º-C. O cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial. ” Na mesma linha, o Decreto nº 73.332/1973, indica que esse Diretor-Geral é “nomeado em comissão e da livre escolha do Presidente da República” (art. 1º, caput).
[bs-quote quote=”A alegação de que a indicação feita pelo Presidente tem caráter político se configura de uma idéia sem sentido; o mesmo que dizer que ‘a água é molhada!'” style=”default” align=”right” author_name=”RAUCIL APARECIDO” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Raulcil-180.jpg”][/bs-quote]
Analisemos, o artigo 37 inciso II da CF dispõe que: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; O texto constitucional é claro e objetivo sobre as condições de investidura em cargo publico excepcionando os cargos em comissão de livre nomeação, no que se enquadra segundo o referido decreto, o cargo de Diretor-Geral de Policia Federal, cujo o critério básico é ser Delegado Federal de classe especial.
Daí estamos diante de um debate sobre a determinação legal objetiva (Atribuição do Presidente) e de outro a determinação do Ministro Alexandre Moraes, com fundamento subjetivo (Principio da Impessoalidade e Moralidade). Em direito, tem-se que os princípios sobrepõem o dispositivo legal, assim, pra dirimirmos tal questão, se faz necessário refletir sobre o que realmente, tais princípios que ora fundamentam a decisão do Digno Ministro da Suprema Corte, querem expressar. Comecemos com a análise, expondo que, os princípios de impessoalidade e moralidade, são norteadores da administração pública, simplificando; no trato, a que todos os agentes estão submissos, a frente das ações próprias de cada órgão, frisemos aqui dois pontos centrais, primeiro, trato impessoal/moral e segundo, ações próprias. Exemplificando, o médico do SUS tem como função prestar o atendimento médico (ação própria) a todos (trato impessoal = sem distinção) e com o comportamento típico de médico (moralidade); o fiscal de trânsito em uma blitz tem como função inspecionar documentos e veículos (ação própria) a todos (trato impessoal = sem distinção) e com o comportamento típico de um agente de trânsito (moralidade), assim, seja o médico ou o agente de transito que implementar privilegio ou desprezo aos seus atendidos, age com pessoalidade e se agir de forma a ter vantagem pra si ou pra outrem, atua com imoralidade. Todavia, não se confunde o trato do agente publico no exercício de suas funções legais com os critérios adotados pro preenchimento do cargo de tais agentes. Em nossa analise, a decisão do Digno Ministro Alexandre de Moraes do STF, imprime tal confusão.
Ao nosso ver, a nomeação dos cargos em comissão da administração publica da União, determinado em lei, atribuídos ao Presidente da Republica, devem ser preenchidos única e exclusivamente por sua indicação, visto que o Presidente da Republica é agente politico legitimado e autorizado pelo povo, e a este deve responsabilidade, do qual poder deve ser emanado. A alegação de que a indicação feita pelo Presidente tem caráter político se configura de uma idéia sem sentido. Seria o mesmo que dizer que “a água é molhada!”. Os cargos de direção, naturalmente serão preenchidos por pessoas com viés ideológico e confiança daquele que nomeia, até porque já sofreu a prévia autorização daqueles que realmente são os donos do poder (povo). Frisa-se que a decisão ataca diretamente o poder de nomeação, visto que não há nenhum ato além desse, algo que pudesse configurar, de forma sólida, o desvirtuamento de fato da atividade a ser exercida, atividade essa que poderia ser abarcada de fato, pelos princípios que regem a administração publica.
Incoerente é, alegar que a mera indicação significará interferência direta na atividade própria do órgão, no caso em debate, Diretoria-Geral da Polícia Federal é de gerenciamento administrativo, que não pode e nem deve ser confundido com a atividade fim, inquérito, onde o delegado preside com autonomia e a autoridade que lhe é peculiar. De acordo com a CF os órgãos de cúpula da Justiça do Brasil (STF, STJ, Tribunais Federais, TST, Tribunais Regionais do Trabalho, STM e outros) são nomeados pelo Presidente da Republica, se buscar a simetria com a ótica do Digno Ministro, chegaríamos a trágica e absurda conclusão que todo o Poder Judiciário estaria comprometido sob o domínio obscuro e subliminar do Poder Executivo. Com a devida vênia ao Ministro Alexandre de Moraes, na decisão em especifico, não expressa a devida profundidade que o tema exige, avalio que há subjetividade extrema, um imaginário vago e unilateral de que o fato da mera indicação, já desencadearia de imediato, uma sucessão de acontecimentos ilegais, que necessitaria de uma tutela antecipada do Poder Judiciário. Para que não sejamos confundido com apoiador incondicional do Presidente Bolsonaro ou que esse artigo reflete alguma manifestação partidária, invocamos como similar equivoco o impedimento da nomeação do ex-Presidente Lula pela então Presidente Dilma pra ocupar o cargo da Casa Civil. Uma coisa é a fumaça do bom direito (fumus boni iuris) e outra é o atributo profético de vidência.
A divisão dos poderes, segundo os pensamentos de Montesquieu, se justifica na condição humana de naturalmente ser centralizadora do poder, o que Madison mencionou que “Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar.”, porém, resguarda-se aos poderes legislativo e executivo a legitimidade e essencialidade ao comando do Estado, atribuindo ao primeiro a prerrogativa de inicial e originário dos demais. Os poderes Legislativo e Executivo são o eixo fundamental de direção dos assuntos do Estado, legitimados pelo povo, para agirem em seu nome, nas palavras de Rousseau:
O princípio da vida política reside na autoridade soberana. O Poder Legislativo é o coração do Estado; o Poder Executivo é o cérebro que dá movimento a todas as partes. O cérebro pode paralisar-se e o indivíduo continuar a viver. Um homem torna-se imbecil e vive, mas, desde que o coração deixe de funcionar, o animal morre.
O Poder Judiciário, em nossa análise, não foge à regra da representação, mesmo tendo seu regime de ocupação dos cargos de forma diferenciada, são da categoria dos agentes políticos e representam o Estado Brasileiro no sentido da coletividade na manutenção e aplicação do direito, faltando-lhes ao nosso ver, para a sua legitimação completa, resta-lhe tão somente um mecanismo efetivo de controle social. É equivocado e de alto risco antidemocrático, o Poder Judiciário implementar ações que se se configurem em comando do Estado. Observe-se que a indicação do Digno Ministro Alexandre de Moraes, legitimamente e no uso de suas atribuições constitucionais, pelo então Presidente Michel Temer se deu em função que? Claro e evidente que é fruto da relação direta e pessoal com o então Presidente naquela ocasião, conformada pelo cargo de Ministro da Justiça, assim como ocorreu com os demais Ministros da Suprema Corte em suas determinadas épocas de nomeação. Queremos acreditar que as diversas relações pessoais dos nomeados com seus nomeadores não interferiram ou interfiram nos posicionamentos e decisões de interesse nacional.
O Brasil, em especial nos últimos dez anos, tem sido um palco de desencontros políticos, econômicos e jurídicos, levemente temperados com um sistema de comunicação em geral tendencioso, que já somam uma série de obstáculos ao nosso desenvolvimento democrático e econômico, tal situação se agrava com o advento da pandemia da Covid-19 . Penso que não merecemos tanto azar, as instituições devem assumir suas responsabilidades, com menos holofotes e mais efeitos na realização do bem estar geral. Medidas que geram conflitos entre poderes, só tumultuam e confundem a população, que tendo que navegar em mar revolto, complica-se na condição de refém daqueles que deveriam lhes proteger e orientar. Se as instituições falham, a quem recorrer? “Quem há de vigiar os próprios vigilantes?”.
RAUCIL APARECIDO
É professor universitário e mestre em Direito Constitucional
professorraucil@gmail.com