O Brasil, em sua história recente, tem sido campo extremamente fértil para o debate político, institucional, acadêmico, filosófico, social, enfim, democrático. Mas, afinal, o povo brasileiro sabe realmente o que significa isso? Entende claramente o momento histórico em que está inserido? Compreende a oportunidade que se apresenta para o crescimento e desenvolvimento da democracia? Quando nos referimos a povo aqui é povo brasileiro em toda a sua amplitude, governo e governados, representantes e representados, doutores e analfabetos, ricos e pobres, todas as raças, todas as cores, todas as denominações religiosas ou não, jovens e idosos, homens e mulheres. Explicamos assim, visto que é comum cometerem o erro de imaginar que a terminologia povo só se aplica aos governados, em especial aos pobres, àqueles que recebem as decisões ou são impactados pelas decisões más sucedidas.
A nossa condição de professor e a nossa humilde formação de mestre em direito constitucional, entretanto utilíssima, nos permitem contribuir com esta micro aula sobre democracia: (Trechos da Dissertação A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E A DEMOCRACIA BRASILEIRA SOB A CONSTITUIÇÃO DE 1988, Me. Raucil 2011)
O texto constitucional brasileiro no artigo 1º institui um “Estado Democrático de Direito”, em uma interpretação inicial tal denominação nos remete o pensamento de que se trata de um Estado cuja construção de sua organização jurídica seja pautada nos preceitos da democracia, com a maior participação popular na concepção do Estado. Entretanto, nos pareceria mais adequado se a terminologia adotada tivesse sido de um “Estado de Direito Democrático”, neste caso, inspirando, ao nosso ver, uma construção pautada na legalidade e voltado para ordenamento igualitário a todos e para todos. Porém, não nos cabe aqui questionar ou refutar a denominação atribuída pelos dignos constituintes, e sim expor o teor a que se propõe tal terminologia.
Em nossa dissertação de mestrado (UNIFOR PAG. 32) realizamos uma pesquisa de campo, naquele momento, quando perguntado aos brasileiros entrevistados o que é democracia. A maioria nos respondeu coisas do tipo: democracia é votar, é eleger os governantes, é falar o que se pensa, é ser livre. Podemos acreditar que a democracia detém tais atributos, mas não se resume em expressões tão simplórias. O conceito de democracia tem sido elaborado ao longo da história da humanidade, a partir da análise filosófica de grandes pensadores, e ainda não se tem uma precisão absoluta de sua definição. Contudo, pode-se extrair o entendimento de que a democracia é um regime que, para seu funcionamento efetivo, necessita de consciência política do povo, associada aos mecanismos e instituições que possibilitem sua realização, entretanto, não apenas um regime a ser implementado, mas um estado de espírito da sociedade, o espírito dito democrático, um sentimento consciente, no sentido de promover o seu próprio desenvolvimento, de firmar as bases pautadas na liberdade, igualdade e justiça, sobretudo na justiça social.
O Estado Brasileiro como qualquer Estado moderno tem tido seus avanços rumo a uma formação democrática, porém não se deve desprezar todo contexto histórico em que ela se desenvolve e a herança histórica atribuída ao povo brasileiro, um país com extensões continentais, grandes desigualdades sociais, governos inconsistentes e a má, em muitos casos, a não formação intelectual e política de seus indivíduos, contribuindo desse modo para o retardamento do poder de percepção do povo brasileiro em relação a essência da democracia e sua aplicação.
O Estado Brasileiro, adotando o modelo constitucional, consagra no Título I dos Princípios Fundamentais em seu artigo 1º o “Estado Democrático de Direito”, texto elaborado em um momento histórico onde a sociedade acabara de sair de um regime ditatorial, daí a ideia primária e primordial de estabelecer a democracia como o grande regime fundante da nova ordem política e social. No entanto, não basta apenas um texto constitucional adotando a democracia como fundamento, para definir que uma sociedade possa se intitular democrática, na verdade, os preceitos estabelecidos pelo ideal democrático de Atenas, a democracia de Platão, de Péricles e de Aristóteles, contém elementos, de certa forma, impraticáveis nos Estados Contemporâneos, todavia devemos nos ater a elementos, que são inafastáveis da essência da democracia, tais como: a liberdade, a igualdade, a justiça e, os mecanismos e instituições que promovam o desenvolvimento da sociedade,
Analisemos esses elementos aos olhos da realidade brasileira, no primeiro momento a liberdade e a igualdade. Apesar de suas distinções conceituais como bem expressas por Bobbio “enquanto a liberdade é em geral um valor para o homem como indivíduo… a igualdade é um valor para o homem como ser genérico, ou seja, como um ente pertencente a uma determinada classe”; a liberdade e a igualdade são dois institutos conexos e estão para democracia como seu eixo fundamental, tidas como os “pilares da democracia”, o grande ponto de partida para sua existência; não há que se falar em democracia sem estabelecer a manifestação livre e igual da vontade dos indivíduos da sociedade. De acordo com Aristóteles para o democrata a “liberdade e a igualdade estão inextricavelmente ligadas”, “a liberdade é o principio básico da constituição democrática […]”, mas a liberdade de que trata a democracia não está ligada ao sentido de independência pura e simples, onde o indivíduo faz o que bem entender sem dá satisfação a ninguém, ao contrário, é estabelecer limites entre iguais no sentido de preservar o convívio social, o que Montesquieu denominou de “liberdade política”.
Ao passo que a igualdade é uma relação formal que, para ser entendida deve-se compreender a “igualdade de quem ou de que em relação a quem ou a quê”, para Tocqueville : o povo democrático se inclina para que todos os cidadãos participem do governo e que cada um tenha um direito igual de participar dele, ninguém poderá exercer um poder tirânico; os homens seriam perfeitamente livres, porque seriam completamente iguais; e seriam perfeitamente iguais porque seriam completamente livres.
Ensina Bobbio que o fundamento de uma sociedade democrática é o pacto de não agressão de cada um com todos os outros e o dever de obediência às decisões coletivas tomadas com base nas regras do jogo de comum acordo preestabelecidas, sendo principal que permite solucionar os conflitos que surgem em cada situação sem recorrer à violência recíproca. O Estado deve refletir a manifestação da vontade geral, lembrando que essa vontade é abstrata, não havendo possibilidades de determinar especificamente sua manifestação, sendo a democracia o regime capaz de colocar em pratica tal vontade, necessitando tão somente de instrumento que possibilite ao povo, detentor da soberania, conduzir os negócios do Estado, no sentido de reverter benefícios para esse mesmo povo de forma mais igualitária.
Segundo Bobbio , o pensamento kantiano, em uma análise na sustentação da concepção liberal do direito, “o direito como condição de coexistência das liberdades individuais, é a concepção Liberal do Estado, o estado tendo o objetivo não de guiar os súditos para a felicidade, mas garantir a ordem”. Por isso não se deve esperar da representação a promoção do sucesso individual dos membros da sociedade, e sim estabelecer um ambiente seguro para que o indivíduo se desenvolva, por meio do trabalho e seu talento individual.
Passemos então a refletir a nossa atual realidade, em especial, depois da eleição do atual Presidente da Republica. Jair Bolsonaro, lembrando que é integrante do povo brasileiro, chega ao poder representando a postura de parcela considerável da população, qual seja o questionamento do sistema político nacional, não julgando aqui o formato no qual ele adota, optou ele pelo confronto direto com membros de outros poderes, em especial do Supremo Tribunal Federal, lançou-se mão de manifestações populares, redes sociais, suspeição do processo eleitoral (duvidas sobre as urnas eletrônicas) dentre outros. Por outro lado, os Ministros do STF, em especial, Alexandre de Morais e Barroso, implementaram uma incursão no sentido contrário, com decisões contrárias ao interesse do Presidente e seus aliados, caso mais emblemático e recente, a condenação dura do Deputado Daniel Silveira, onde o Presidente Bolsonaro respondeu com um Indulto individual, que por sua vez, já é objeto de ação de Partidos Políticos e parlamentares pra julgamento na Corte sobre o caso.
Observem a escalada dos atos promovidos, tanto de uma lado como de outro, no sentido de se atingirem pessoalmente, afastando-se absolutamente da essência funcional a que os poderes são concebidos, por último, no XXIV Encontro de Magistrados, realizado em Salvador-BA na ultima quinta feira, 12, o Ministro Barroso em seu discurso disse: ”Que a democracia passa por um processo de erosão” (Correio Braziliense). Já o Ministro Alexandre de Morais disse que: “A internet deu voz aos imbecis” e ainda que “a Corte não irá se acovardar” diante de “milícias digitais de extrema direita”( Portal O POVO). Falas desse tipo, mesmo de forma elaborada, direcionada a publico específico, são proferidas propositadamente no sentido de serem reverberadas com um alvo claro e especifico (Presidente Bolsonaro e seus aliados) , tal sentimento inevitavelmente irá revestir as futuras decisões judiciais da Corte Suprema ou da Corte Eleitoral, cuja a Presidência será justamente do Ministro Alexandre de Moraes.
Discursos, decisões e as ações de ambos os lados, invocam pra si a proteção da democracia. Mas um momento! Tem algo estranho no ar! Um país onde o povo vai para a rua cobrar satisfações das instituições, onde alguns deles, tomados pela emoção exageram nas expressões verbais, sem violência, vandalismo ou agressão física, e todos são taxados de antidemocráticos; onde a vítima (Ministro do STF) da agressão verbal é quem indicia, julga e condena o agressor (Daniel Silveira); onde se disputa as eleições em que o candidato (Jair Bolsonaro) estará sob a fiscalização do seu notório inimigo (Ministro Alexandre de Moraes) e ninguém sugere a suspeição; onde pré-candidatos se atacam ferozmente intitulando-se de direita (Jair Bolsonaro) e de esquerda (Lula) semeando um discurso de divisão pra um povo que nem sabe exatamente o que são tais preceitos; onde, na prática, por mais que tentam disfarçar com pronunciamentos cheios de “juridiquês”, a cúpula do Poder Judiciário adota como jurisprudência nas decisões a posição evidente de que se for do lado do Presidente da Republica, se nega, se for contra se concede.
Dessa forma, é um tanto quanto complicado reconhecer a democracia no Brasil, por outro lado, diferente dos nossos Doutos Ministros, não entendemos tais anomalias como erosão da democracia, nem tão pouco os que tentam se insurgir contra o sistema político, mesmo sem a devida habilidade, de imbecis. Vemos de outra maneira, assim como uma criança em seu processo de aprendizado, comete erros ao agir ou ao falar, visto que tudo que lhe salta aos seus olhos é novo, segue o povo brasileiro na sua percepção sobre a democracia, pois essa é algo inegavelmente novo, desde aquele cidadão mais humilde desempregado, sem estudos sofrendo na periferia de uma cidade até o Ministro da Suprema Corte no centro do poder, padecem da mesma dificuldade de compreender a democracia na sua essência, quando provocados, demonstram idêntico comportamento, de indignação, raiva e vingança, não conseguem estabelecer o discernimento em suas atuações, pois lhe faltam, antes da democracia, serem democráticos. O que se espera daqueles que arrogam pra si mais conhecimento é que se comportem com a grandeza com que a função do Poder Constituído lhes impõem e ajam com serenidade e isenção própria das instituições em que são integrantes.
Portanto, a democracia definitivamente não se resume em uma simples palavra a ser proferida por conveniência, trata-se do reflexo comportamental de uma sociedade evoluída democraticamente, não é um ato, uma ação ou um discurso que estabelece a democracia, na verdade é o estado de espírito de um povo, construido no tempo, forjado na diversas experiências e embates, dos quais florescerão o aprimoramento dos preceitos democráticos. Um Estado composto por diversidades de ideologias, raças, religiões, cores, credos,sexo e partidos não significa ser uma nação dividida, ao contrário, saber coexistir com as adversidades inerentes a pluralidade é a representação máxima do espírito democrático, enquanto o povo brasileiro seguir divido, não importa quem serão os governantes, seguirá sempre o Brasil uma democracia dos antidemocráticos.
RAUCIL APARECIDO
É professor universitário e mestre em Direito Constitucional
professorraucil@gmail.com