Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog, que chegou ao Brasil com os pais, fugindo do nazismo, levado para o quartel do 2º Exército de São Paulo, foi recebido com um “Judeu!”, seguido de diversos xingamentos antissemitas. Ele nunca pegou em armas, nunca integrou nenhum grupo guerrilheiro. Foi encontrado enforcado na cela. Assassinado covardemente, os militares tentaram vender a história de que teria se suicidado. Não colou.
O estudante Honestino Guimarães desapareceu em 1972 com apenas 24 anos. Segundo um colega, foi arrastado, carregado e muito espancado. Grávida, a jornalista Míriam Leitão sofreu torturas a tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça, passou pelo constrangimento de ficar nua na frente de dez soldados e três agentes da repressão, e horas intermináveis trancada em sala escura com uma jiboia.
A imprensa censurada, músicas tinham que ser submetidas a militares parvos, novelas proibidas, perseguições mais diversas, Congresso fechado e centenas torturados e assassinados.
Nada disso foi citado na malfadada ordem do dia do novo ministro da Defesa, general Braga Netto, que se rendeu a um mau soldado, o presidente Jair Bolsonaro, que deixou o Exército com desonra, por indisciplina e sob suspeita de tentar organizar um ato terrorista nos quartéis. O título de mau soldado foi dado a ele por alguém insuspeito, o general Ernesto Geisel.
É impensável que numa época em que quase 4 mil brasileiros morrem por dia de Covid-19, que faltam oxigênio e kit intubação nos hospitais, em que tudo isso ocorre porque o governo federal desdenhou da única solução, a vacina, tenhamos que vir a público defender algo tão fundamental quanto o ar que respiramos: a democracia.
Em sua nota mentirosa, Braga Netto diz que temos que “celebrar” o que chamou de “movimento de 1964”, uma indecência histórica que completa 57 anos nesta quarta-feira, 31. Primeiro, não temos nada a celebrar; segundo, não foi movimento, mas um golpe militar, que jogou o Brasil na escuridão que descrevemos acima.
O novo ministro, que assumiu porque seu antecessor e os comandantes militares se recusaram a transformar Exército, Marinha e Aeronáutica em milícia do presidente Bolsonaro, afirma que “as Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Um revisionismo histórico repleto de mentiras: não houve pacificação, mas a imposição de um regime truculento, e as liberdades democráticas foram reconquistadas pela resistência da oposição. Os militares fracassaram: quebraram o país, assassinaram, torturaram, sufocaram o florescimento de novos líderes que tanto fazem falta hoje.
Temos que repudiar esta farsa que é a nota de Braga Netto. Melhor ficar com as postagens do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, que, em seu perfil no Twitter, traçou o quadro do que realmente ocorreu em 21 anos de horrores no Brasil. “Só pode sustentar que não houve ditadura no Brasil quem nunca viu um adversário do regime que tenha sido torturado, um professor que tenha sido cassado ou um jornalista censurado. Tortura, cassações e censura são coisas de ditaduras, não de democracias”, afirmou Barroso.
E continuou: “Os jornais eram publicados com páginas em branco ou poemas. Os compositores tinham que submeter previamente suas músicas ao departamento de censura. A novela Roque Santeiro foi proibida e o Ballet Bolshoi não pôde se apresentar no Brasil porque era propaganda comunista. As regras eleitorais eram manipuladas. Ditaduras vêm com intolerância, violência contra os adversários e falta de liberdade. Apesar da crise dos últimos anos, o período democrático trouxe muito mais progresso social que a ditadura, com o maior aumento de IDH da América Latina”.
Esta quarta-feira não é um dia a ser comemorado, como diz mais um general que se rendeu a um mau soldado. É dia de luto. Nunca é demais lembrar as belas palavras do histórico discurso do deputado Ulysses Guimarães, quando da promulgação da Carta Cidadã, em 1988:
“Quanto a ela [a Constituição], discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.” (…) “Traidor da Constituição é traidor da pátria. (…) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.”
Tenho ódio e nojo à ditadura.
Viva a democracia!
Ditadura nunca mais!
CT, Palmas, 31 de março de 2021.
Assista trecho do discurso do deputado Ulysses Guimarães: