A pandemia da Covid-19 fez com que viesse à tona toda uma mentalidade no Brasil que caracteriza uma cultura altamente subdesenvolvida que achávamos que era pouco representantiva e que o país já caminhava lépido para superar, rumo a padrões civilizados. Ledo engano. O novo coronavírus mostrou que ainda nos encontramos aferrados a um pensamento absurdamente medieval, num misto de misticismo e alquimia próprios daquela época das trevas do conhecimento.
Na Europa, a população, no geral, se pautou pelas orientações da mais alta ciência, não se deixando levar pelos oportunistas que buscam mídia. Com isso, conseguiu conter a evolução da doença, minimizar seus impactos dentro do que foi possível e agora começa a viver na nova normalidade. Quem atrapalhou lá foram algumas autoridades que negaram inicialmente os possíveis impactos do novo coronavírus. Mas refluíram assim que constataram o erro e muitas delas pediram desculpas públicas, como foi o caso do prefeito de Milão, Giuseppe Sala.
Essa é uma das diferenças entre a mentalidade desenvolvida e a subdesenvolvida que esta pandemia mostrou que impera no Brasil. Afinal, errar é próprio da condição humana, o que é não é admissível, por produzir resultados desastrosos, como assistimos hoje por aqui, é insistir no caminho enganoso. Nisso, o presidente Jair Bolsonaro tem sido o pior exemplo para o mundo, entre as grandes democracias. Lá atrás chamou a Covid-19 de “gripezinha”, desautorizou a ciência ao ir para a rua sem máscara promovendo aglomerações, incentivou motins nacionais contra a política do isolamento social adotada em todo o mundo e faz propaganda de um medicamento cientificamente comprovado como ineficaz para o combate à doença.
Fora a plantação das mais estapafúrdias teorias da conspiração por seus seguidores, gerando confusão nas mentes já absurdamente subdesenvolvidas, que se tornaram ainda mais adversárias da ciência. Em todas as pandemias mundiais, a ignorância foi o principal motor de sua disseminação. Caso da peste negra, nos idos de 1348, que dizimou milhões na Europa, quando toda uma geração passou sem saber a causa dela: o carrapato do rato. Isso porque não havia uma ciência desenvolvida como temos hoje.
Esse é o maior absurdo da atual pandemia: rejeitarmos toda a evolução científica, sobretudo dos últimos 100 anos, em nome de mitos, lendas e de uma química medieval. Lamentavelmente está claro que somos ainda uma nação profundamente ignorante, e, o que é pior, que se orgulha da ignorância que a cega. Mas a forma como temos nos comportado diante da Covid-19 não é algo novo.
O escritor e jornalista Eduardo Bueno conta que, em 1849, chegou a Salvador (BA) um navio americano chamado Brazil, vindo de New Orleans (EUA), onde havia poucos casos de febre amarela. Contudo, ele havia parado em Barbados, que sofria uma epidemia da doença, e sua tripulação foi contaminada. A embarcação aportou na capital baiana em outubro de 1849 e dois médicos ingleses que moravam na cidade imediatamente perceberam que as pessoas estavam com a febre amarela. Assim, cumpriram sua obrigação de alertar as autoridades. Ao invés de tomar as previdências para impedir o avanço da doença, o governo acusou os dois ingleses de conspirar contra o Brasil. Os médicos foram humilhados, devastados pela imprensa e obrigados a silenciar.
Mesmo quando a presença da febre amarela foi confirmada em território nacional, a doença continuou sendo negada pelas autoridades. A imprensa viu que a coisa era séria, começou a falar, mas foi censurada. Totalmente proibida de noticiar qualquer fato relacionado à epidemia. Eduardo Bueno conta que o governo chegou ao ponto de proibir enterros diurnos, que passaram a ser somente noturnos, na tentativa de esconder as vítimas.
A febre amarela chegou ao Rio, com uma população na época de 166 mil habitantes. Segundo as estimativas do médico Pereira Rego, 90.658 pessoas ficaram doentes e 4.160 morreram.
Quase 70 anos depois veio a gripe espanhola. O professor de história Walter Solla conta que o presidente Wenceslau Brás negou que a doença estava no Brasil. Mesmo quando começaram a morrer vítimas, continuou a negar. Ainda depois que a pandemia avançou dizia que não era tão grave. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Nesse negacionismo, que é, portanto, histórico, o que mais temos que lamentar é justamente o fato de nossa mentalidade não ter evoluído em séculos, de mantermos o mesmo pensamento subdesenvolvido, aferrado à anticiência e ao misticismo, deficiências culturais que fazem com que qualquer teoria da conspiração plantada em território nacional floresça e dê frutos.
Somos um país sem leitura, que, apesar de termos tido gigantes da literatura universal, como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Euclides da Cunha, o grosso da nossa população é absurdamente ágrafa, como também afirma o escritor Eduardo Bueno.
Para fechar a tragédia, esse público ágrafo se informa pelos tios e tias do WhatsApp — 79% dele, conforme recente pesquisa.
Precisávamos furar essa blindagem subdesenvolvida com valorização da educação e da leitura. Não para esta pandemia, porque já é tarde. Nossa ignorância vai levar à morte muito, mas muito mais do que os mais de 101 mil brasileiros vitimados até agora. Infelizmente. Porém, como sequer começar a mudar esse quadro de subdesenvolvimento mental e cultural diante de um governo que é ele próprio anticiência?
A tristeza que me abate é que sem reverter esse mal continuaremos sendo este país sem presente e sem futuro. Triste sina.
CT, Palmas, 11 de agosto de 2020.