De coração mesmo. Nunca torci tanto para a ciência estar errada e o Tio do Zap certo. É ele quem tem abastecido de informação sobre a pandemia da Covid-19 a maior parte dos brasileiros. Pesquisa do Senado e da Câmara dos Deputados mostrou que 79% da população tem o WhatsApp como sua principal fonte de notícias. Assim, pode-se inferir que o que o povo sabe sobre o novo coronavírus é, em grande medida, o que recebe nesse aplicativo de mensagem de celular.
É, portanto, por esse “jornal instantâneo”, fonte inesgotável de fake news, que fica sabendo que a cloroquina é a garantia de cura para a Covid-19, vírus criado num laboratório chinês como estratégia de um projeto interplanetário de dominação mundial, a partir do crack global que vai provocar nas bolsas de valores. Há outro Tio do Zap, esse ainda mais bem informado, que assegura que o novo coronavírus, na verdade, simplesmente não existe. A história foi inoculada pela China, dentro daquele projeto de dominação intergaláctica, através de um homem infiltrado estrategicamente por Pequim na Organização Mundial da Saúde (OMS), um tal de Tedros Adhanom.
Conforme esse Tio do Zap, altamente bem informado, consultor oficial de ninguém menos do que o próprio presidente Jair Bolsonaro, nunca houve sequer uma única morte em decorrência do novo coronavírus! Na verdade, são os comunistas brasileiros — uma esquerdalha! uns esquerdopatas! —, aliados dos chineses, que têm alterado as certidões de óbito e colocado a Covid-19 como causa mortis para tomar o lugar dos nossos cânceres, infartos e outros males mais toleráveis. O objetivo, óbvio, atingir o governo do”mito”.
Saindo do campo da alucinação fértil em teorias da conspiração para voltar à realidade dos fatos, é toda essa desinformação que impede uma forte reação da sociedade brasileira à decisão precipitada de prefeitos de reabrir a economia do Brasil antes de o país atingir o pico da Covid-19. A Europa, um mês depois de descer do cume da montanha, ainda ensaia um retorno à nova normalidade, avançando e recuando, conforme as ameaças da Covid-19. Mas o povo brasileiro age como se já tivesse vencido o novo coronavírus. Aqui nunca existiu uma quarentena séria, em lugar nenhum. Nossos lockdown foram uma grande piada para o mundo e os casos de doentes e mortes só que crescem.
Em registros da doença só perdemos para os Estados Unidos, mas caminhamos a passos rápidos para superá-los; e em vidas ceifadas não será diferente. A irresponsabilidade da sociedade e de seus líderes vai fazer com que o Brasil viva a pior tragédia da Covid-19 em todo o mundo. Em 1918, a Gripe Espanhola matou 35 mil brasileiros. Neste final de semana vamos superar esse número e continuar crescendo exponencialmente sabe-se lá até quando, como ouvi de especialistas esta semana.
Viramos párias diante do mundo. Nossos vizinhos não querem abrir fronteira com o Brasil. Os Estados Unidos se recusam a receber quem parte daqui ou que tenha passado por esse território contaminado nos últimos 15 dias. E os investidores, como será que enxergam nossa condução dessa crise?
O Tocantins segue a mesma marcha da insensatez. Olhem o caso de Araguaína. O defensor público Pablo Chaer, coordenador do Núcleo Aplicado das Minorias e Ações Coletivas (Nuamac), afirmou que 100% das UTIs locais estão lotadas. Ter uma baixa ocupação desses leitos é a condição mais básica para se pensar em reabrir a economia.
A cidade acumula 2.158 casos e já produziu 21 cadáveres, mas parece achar pouco e quer mais. O comércio estará todo funcionando a partir de segunda-feira, 8. Claro, “com restrições”, com o comerciante assinando uma bobagem lá para garantir que não vai descumprir. Qual a chance disso ser obedecido? O secretário do Desenvolvimento Econômico de Araguaína, Júnior Marzola, criticou duramente os empresários da cidade, em videoconferência no dia 28, justamente porque houve total desrespeito às normas de segurança na primeira flexibilização do município, antes que a cidade perdesse o controle da doença. E perdeu.
Não adianta tentar desconectar as coisas. Não é possível. Geograficamente, Araguaína está numa posição muito desfavorável para a pandemia. Às margens da Belém-Brasília, vizinha de Pará, Maranhão e do Bico do Papagaio, territórios sob fogo cerrado pela Covid-19.
A situação é muito óbvia para haver tanta relutância por parte da prefeitura e do setor produtivo: o vírus não se movimenta, quem se movimenta são as pessoas. Elas vão e vêm, e, assim, levam e trazem o microorganismo. Araguaína precisa é fazer ao contrário do que ensaia e parar totalmente, fechar entradas e saídas. Se não fizer isso, pode colocar mil UTIs lá que não darão conta.
Gurupi é outro lugar em que o número de casos aumentou significativamente desde que abriu o comércio. Em dois períodos. Ou seja, o sujeito escolhe se quer se contaminar de manhã ou à tarde porque acabará tendo que ir duas vezes por dia às compras. Claro, a prefeitura nega de pé juntos e até fica irritada quando tentamos ligar os pontos. Ou a culpa é só dos caminhoneiros que passam por lá, dizem uns, ou a transmissão da doença se dá só âmbito familiar, como se alguém não pudesse ter pego numa loja e passado para os familiares.
Mas vejam os números e briguem com eles: quando a cidade flexibilizou no dia 7 de maio tinha 7 casos e agora são 115. Final de semana passada liberou as igrejas, “com restrições” e essa bobagem toda. Dentro de 15 dias veremos. É verdade que lá está bem longe do Pará, do Maranhão e do Bico, mas nada garante que os números não possam explodir de uma hora para outra.
Palmas vem numa sequência de flexibilizações há semanas. Os números da própria prefeitura mostram que a quarenta aqui é obra de ficção há muito tempo. A secretária de Desenvolvimento Econômico e Emprego, Mila Jaber, apresentou um levamento no dia 29 segundo o qual apenas 25,07% das empresas não estão autorizadas a funcionar, e que 74,93% operam neste momento. De acordo com a própria secretária, 100% das empresas agropecuárias, da construção civil e da indústria já trabalham normalmente, e 81% do setor de serviço também. O que começa a voltar na segunda-feira é o comércio, que tem apenas 47% das empresas em funcionamento. Fundamental observar: é o setor que mais promove fluxo de pessoas pela cidade.
A reabertura de Palmas e Araguaína não promoverá uma intensa movimentação apenas nelas, mas também em todo o Estado. Ambas são polos regionais, assim, com a máquina da economia religada, passarão a ser mais buscadas também pelos moradores dos municípios menores. Dessa forma, há um risco real de ter não só uma nova explosão de casos nas duas maiores cidades tocantinenses, como também de possibilitar que o vírus se interiorize ainda mais.
Ao contrário do que o movimento dos líderes sugerem, nós ainda não alcançamos o pico da Covid-19 e muito menos passamos por ele, como as medidas que estão sendo adotadas parecem que querem nos fazer crer. Neste momento temos 3.160 infectados no Tocantins em isolamento ou internados. Eles podem sarar ou evoluir para uma situação que exigirá respiradores. Temos estrutura para aguentar esse rojão? Entidades médicas avisam que não.
Registramos mil novos casos do novo coronavírus a cada cinco dias, como a Coluna do CT mostrou nesta sexta-feira, 5. Nesse ritmo saltaremos dos atuais 5.182 para mais de 10 mil registros da doença por volta do dia 30 de junho.
Isso sem contar os efeitos deletérios dessa reabertura do comércio num momento impróprio e de forma absolutamente inoportuna.
Oremos.
CT, Palmas, 5 de junho de 2020.