As eleições municipais são a grande incógnita neste momento em que o País está mergulhado numa crise sanitária que não se sabe quando permitirá algum grau de normalidade na convivência social, sem a qual fica impraticável um processo que exige convenções, reuniões, comícios, entrega de panfletos, etc. O novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, já admite o adiamento. Não quer atender o sonho de todo prefeito e vereador, a unificação das disputas em 2022 com a extensão dos mandatos até lá, mas já fala que a votação pode se dar entre o final de novembro e o início de dezembro. Nada certo, sobretudo pelo fato de que a retomada precipitada da economia em todo o Brasil pode adiar ainda por muito tempo um armistício com o novo coronavírus.
É verdade que as pré-campanhas foram ofuscadas pela pandemia. De um lado, o foco da mídia hoje está todo nas loucuras do presidente da República e no aumento de casos e mortes por Covid-19. De outro, há um engessamento natural das movimentações, já que não se pode fazer visitas, marcar reuniões com líderes e, por óbvio, ninguém se arrisca a ter conversa de coxia em plataformas digitais, sujeitas a gravações. Isso seria produzir provas contra si mesmo.
As conversas entre os líderes avançam, mas em ritmo muito mais lento do que deveria e do que se pretendia. Se em julho o ministro Barroso decidir manter a eleição para 4 de outubro será um pega pra capar. Como já afirmei em outra oportunidade, se o calendário da Justiça Eleitoral segue alheio às dificuldades do fazer político, o dos pré-candidatos, não. E tiveram que definir seu partido sem condições ideais para discussões mais amplas e podem — no caso de mantida a data de outubro — ter que improvisar convenções, costurar alianças sem debates mais profundos e até abrir mão de projetos eleitorais que em outras circunstâncias poderiam ser plenamente viáveis.
Se o presidente do TSE enxergar a necessidade de adiar as eleições municipais para o final do ano, então, a classe política ganha um fôlego para se organizar melhor. Quero crer que o bom senso prevalecerá e esse adiamento será inevitável.
Sem ambiente para intensificar a pré-campanha, já que mobilidade é limitada, os pré-candidatos tomam carona nas dificuldades geradas pela Covid-19 para ficar bem com a comunidade. Mas também são alvo dos grupos organizados que veem o ano eleitoral como um aliado para pressionar a classe política em busca de soluções para seus problemas pandêmicos.
No primeiro caso, na carona dos pré-candidatos com a Covid-19, sai em vantagem, claro, quem está com a máquina nas mãos. Um pouco de tudo: é preciso socorrer quem passa fome, levar pacientes para atendimento médico (não só do novo coronavírus) e até providenciar caixões para sepultamento. Entrega de cestas básicas é o clássico. As redes sociais estão repletas de fotos de gente de olho em vaga em câmara e na cadeira de prefeito fazendo bondade com o chapéu alheio, isto é, do contribuinte.
De outro lado, mandatários ficam em saia justa ao serem jogados contra a parede por grupos de pressão bem organizados e com força eleitoral, caso de empresários e igrejas. Usam esse poder de fogo para enfiar goela baixo de prefeitos e vereadores a retomada da atividade econômica e de culto, a despeito de um vírus de rápida transmissibilidade, da baixa estrutura de UTIs para socorro dos doentes e do número crescente de mortos.
Os parlamentares ainda conseguem extrapolar o bom senso e defender o indefensável, como a retomada de cultos, porque só precisam de pedaços do eleitorado para continuarem no mandato. Não buscam o voto majoritário, mas o proporcional. Funciona assim: se o vereador tem como base o movimento evangélico, que se lasque se vão morrer ou não de Covid-19 e as críticas dos demais setores da sociedade. Nesta ilustração, ele sempre se elege com voto desse grupo específico — evangélicos —, e os que recebe de outros segmentos são pouco representativos. Assim, se intelectuais, jornalistas, médicos e sabe-se mais lá quem vão criticá-lo, pouco importa. O povo quer voltar à igreja, ele vai e defende, e pronto.
Há outro detalhe interessante neste exemplo meramente fictício: o fato desse vereador ser criticado nas mídias sociais e imprensa pela defesa que faz, não lhe tira votos. Mais fácil aumentar, na medida em que outro número considerável de eleitores de religiões diversas possa, de repente, se identificar com a bandeira.
A situação já é mais complicada para os prefeitos. Eles precisam de um voto majoritário, isto é, seu público-alvo está em todos os segmentos, ou na maior parte deles, não num pedaço apenas. Assim, não é tão simples ceder à pressão. Tentam levar na meia verdade. Por exemplo, mantém-se a postura de que se está sendo rígido no cumprimento das medidas de isolamento para agradar os “cientificistas”, mas vai cedendo aqui e ali, muitas vezes sem alarde. Se é pego no duplo padrão por uns, consegue convencer outros e ainda pode confundir parte significativa do eleitorado.
A questão é que, tanto para prefeitos quanto para vereadores, o desfecho só será eleitoralmente positivo se a Covid-19 não fizer grandes estragos. Se os casos não aumentarem significativamente e o sistema de saúde não colapsar com número expressivo de mortos, os pré-candidatos vão respirar aliviados e sairão ovacionados por sua postura na pandemia. Neste caso, se tornarão candidatos muito fortes e, se tiveram uma gestão ou mandato parlamentar razoavelmente ajambrado, poderão ter sucesso nas urnas em outubro, novembro, dezembro ou quando o ministro Barroso determinar.
De outro lado, se a disseminação da doença perder o controle, o sistema diminuto que as cidades possuem — do Tocantins e de todo o Brasil — não derem conta de uma demanda altíssima gerada pela festança da reabertura de comércio e igrejas, aí é bem provável que o candidato não só terá insucesso eleitoral, como, a depender do estrago que a Covid-19 fizer, poderá ficar marcado por muitos anos e até ter a carreira interrompida.
Claro que, ainda nesse último caso, poderá tentar jogar a culpa nos governos do Estado ou Federal, que, de fato, podem até ter parte da responsabilidade. Mas o cidadão vive é no município e é do prefeito e do vereador, em última instância, que ele espera soluções para as suas dificuldades. Além disso, o encontro com as urnas este ano é municipal, não estadual — é em 2022 que governadores e presidente terão que dar suas explicações.
O fato de a pandemia ter coincidido com um ano eleitoral é um complicador a mais para superá-la, já que dificulta as discussões de interesse dos municípios na sucessão, sejam sobre propostas ou de definição de candidatos; possibilita os abusos da máquina com a desculpa de socorro aos necessitados e ainda sujeita as políticas de saúde, que deveriam ser absolutamente austeras neste momento, à influência de grupos fortes de pressão, como igrejas e empresariado.
Por isso, fica bastante evidente que as pré-campanhas são importantes aliadas para os estragos que a Covid-19 pretende fazer.
CT, Palmas, 2 de junho de 2020.