A coisa tá ficando feia, e o tocantinense começa a acordar para a dura realidade dos tempos de pandemia. Pelo número excessivo de casos de Covid-19, ou pelo manto escuro da morte que vem cobrindo o Estado? Nada disso. A reação das pessoas ao avanço do novo coronavírus é a mesma para todos os males coletivos: só ocorre com os outros e os deles, nunca com o nossos. Por isso, quando leem os dados frios do crescimento vertiginoso da doença, que dobra a cada semana, e sobre os assustadores óbitos, o tocantinense só faz uma oração, sai às ruas para sentir o ar fresco e aproveita para tomar umas.
Apertou bem aí, a situação. O problema entrou na casa de cada morador de 35 cidades do Estado e ameaçou por dois dias a Capital. Naquelas veio pelo termo da moda — lockdown — e em Palmas meio que por um certo Déjà-vu, com o susto tomado com a temida “lei seca”. Trancafiado em casa por uma semana e sem poder tomar uma “caninha”, não há olhos que não se abram para o perigo do novo coronavírus.
Nos municípios em que a Covid-19 ameaça fugir do controle, todos deverão ficar confinados até as 18 horas de sábado, 23. Mas existem dois sérios problemas para o povo obedecer e ficar olhando para as paredes do lar-doce-lar por uma semana. O primeiro é de ordem disciplinar mesmo. O tocantinense, aliás, como todo brasileiro, já não vinha atendendo os apelos desesperados dos prefeitos para ficar em casa, então, como obrigá-lo a respeitar o lockdown? Uma semana inteira em isolamento total? Sem bar? Sem roda de conversa?
A dona do motel de Xambioá sintetizou toda a indignação popular ao fechamento da cidade num vídeo nas redes sociais com mensagem bem direta para viajantes e amantes: não tem essa de lockdown, avisou em termos, digamos, “mais ardentes”. Podem ir lá, passar a noite ou mesmo namorar por uma hora, convidou utilizando-se de uma figura de linguagem nada apropriada para se reproduzir numa crônica.
O outro ponto que dificulta o cumprimento da medida extrema do governador Mauro Carlesse (DEM) é o termo. Lockdown? Coisa dos estrangeiros, já li nas redes socais. Ou alguma promoção especial para época de pandemia, arriscou outra postagem. Não tem a black friday? Então, agora vem outra campanha, o lockdown! O brasileiro cede fácil às modinhas do capitalismo selvagem americano, criticou alguém avesso a qualquer estrangeirismo.
No português, significa “confinamento”, que, no Brasil, nos remete diretamente a gado. Se bem que pelos movimentos políticos ascendentes de hoje não estaria muito fora. Mas, para não piorar a polarização e também por ir contra o humanismo vigente, que tornou politicamente incorreto qualquer comparação de homens e mulheres a bois e vacas, melhor descartar essa palavra.
O brasileiro é mais despojado, alegre, divertido. Então houve os que sugeriram algo mais irreverente. “Tranca-rua” e “pega-fujão”, por exemplo. Tranca-rua? Os mais carolas reagiram com o sinal-da-cruz várias vezes. Avisaram que rejeitam se sujeitar a um termo que se refere ao “coisa-ruim”. Na hora dar o voto ao “coisa-ruim” não espiritualizaram a questão, né? Tudo bem, nada de divisionismo num momento em que a prioridade é salvar vidas.
“Pega-fujão” também foi recusado. Que falta de classe! Gente de bem, de moral ilibada, não pode falar numa roda de seus iguais algo do tipo “estamos num pega-fujão”. Já pensou a desmoralização? Algo tão reles, gíria soez, típica de boteco de boca de vila, se indignam com o nariz apontado para o céu.
Nisso já chegamos à terça-feira, 19, o lockdown termina no sábado e nada de decidir sobre qual termo utilizar para convencer as pessoas ao que importa: ficarem em casa e dela não saírem para um delivery do já carinhosamente chamado de “coronga” em perdigotos, abraços, beijos e apertos de mãos.
Mas se é difícil trancar dentro de casa o povo do Bico, Araguaína, Cariri, Colinas, Guaraí e Caseara, imagine a rolo que a prefeita Cinthia Ribeiro (PSDB) arrumou para a sua cabeça. Nem o salto exponencial de novos casos da doença ou a perda iminente do emprego por causa da pandemia causaram tanta a revolta como se viu nas redes sociais quando ela anunciou a proibição do acesso ao precioso líquido, com a malfadada “lei seca”. A compreensão com as medidas da prefeita para a quarentena tem sido até substantiva, mas quando o palmense se viu obrigado a ficar em casa sem poder tomar umas para acalmar o tédio, aí, epa!
Mas eu disse lá atrás que isso tem um certo Déjà-vu. Quem revelou nas redes sociais foi o jornalista e publicitário Marcelo Silva. Ele lembrou dos primeiros meses da construção de Palmas, quando havia muitos homens e “um ambiente de garimpo” com muitas brigas. O então governador Siqueira Campos quis pôr fim à arruaça e decretou “lei seca” no plano diretor para ter mais controle da situação. Conta Marcelinho que o povo, sempre criativo, trazia cachaça de Taquaralto na garrafa térmica.
Nesta pandemia não foi preciso essa espécie de “santo do pau oco” para traficar a “caninha”, graças à Associação Comercial e Industrial de Palmas (Acipa). A “lei seca” desesperou tanto que a entidade dos empresários, que não havia judicializado as medidas de fechamento do comércio, não se calou diante de tamanho abuso — afinal, quem cala consente —, e foi ao Fórum para democratizar a “marvada”.
Atendida na noite dessa segunda-feira pelo juiz Roniclay Alves de Morais, a ação levou calma às redes sociais, e, para a alegria do “coronga”, intensa movimentação nas ruas em busca do mercado mais próximo para se garantir o estoque.
Afinal, vai que tenha algum abstêmio radical no TJ.
CT, Palmas, 19 de maio de 2020.