Pensa um negócio desajeitado. Seja a que cobre toda a face abaixo dos olhos, seja a estilo focinheira, que esconde apenas nariz e boca. Prefiro essa última. É um pouco melhor, sobretudo para nós, os quatro-olhos. A máscara mais ampla, além de dificultar a respiração, embaça mais as lentes. No YouTube, onde se acha de tudo, aprendi a passar sabonete e, assim, evitar a condensação chata de ar, que tanto me irrita. Mas, logo em seguida, a plataforma me sugeriu o vídeo da oftalmologista que diz que essas práticas anti-embaçamento estragam as lentes. Procuro sempre, por isso, optar pela focinheira.
Mas o ar que se materializa nas lentes não é o único problema das máscaras. É só você pôr o acessório que surge uma tentação. Assim que fixa os elásticos atrás das orelhas bate aquela vontade de coçar o nariz. Resistimos, procuramos pensar que é só psicológico, mudamos o foco da atenção esperando que logo passe. Mas não passa. Está lá, e o incômodo vai crescendo, fica mais forte e, em poucos minutos, seu foco que deveria ser outro é única e exclusivamente o nariz.
Lembramos dos médicos ensinando o dia inteiro a mesma coisa na TV: não pode coçar por cima da máscara. Fica a dúvida se pode ou não colocar a mão por baixo dela. Não nos recordamos o que os especialistas falaram a respeito. Assim, é melhor começar tudo de novo. Tiramos a máscara pelos elásticos, a partir das orelhas, a seguramos como se pudesse explodir a qualquer momento e, com a mão livre, coçamos, deliciosamente, o nariz. Que sensação!
Quando a máscara volta ao rosto, sempre segurando pelos elásticos, como recomendam os médicos, nunca pelo pano, o comichão toma conta das bochechas. E vai tudo de novo: é psicológico no início, tentamos focar a mente em algo útil, até que, derrotados pelo desconforto, tiramos o acessório e atendemos nossos desejos febris.
E correr? Já tentou um mísero trotezinho com a máscara peneirando o ar que seus pulmões tanto clamam? Tira toda a sua concentração dos movimentos de braços e pernas. Sua atenção é voltada exclusivamente para o volume de oxigênio que entra, ou melhor, que deixa de entrar. O que parece é que o acessório miserável também precisa respirar e distribui o oxigênio na base do três doses para mim (a máscara) e uma para você (o corredor).
Nessa hora, esquecemos toda a técnica e vamos para o salve-se-quem-puder. Nada de inspira pelo nariz e expira pela boca. Simplesmente arreganhamos a mandíbula até onde é possível, transformamos a garganta num imenso túnel e tragamos o máximo de ar para recuperar as cotas que a máscara confisca de nossos pulmões.
É preciso confessar que, às vezes, chega a um ponto que, vencidos, sabotamos. O pano desce e fica só na boca, uma justificada rebeldia libertária. Enfim, sentimos o oxigênio correndo sem miserê pelos canais devidos de respiração. Que delícia!
No mercado, o pessoal vê a máscara como se fosse um escudo contra a Covid-19. O novo coronavírus se atira com força sobre seu rosto, louco para destruir logo seus pulmões, mas dá com a cara no acessório e cai morto no chão. Num sentimento de blindagem, os consumidores se esquecem em público da regra básica destas épocas de pandemia: a do distanciamento.
Você está numa banca de frutas e o cidadão vem sem o menor constrangimento e joga parte do corpo a centímetros de seu rosto para que o braço atravesse do outro lado e ele pegue uma maçã que achou mais bonita, suculenta ou qualquer coisa do tipo, sei lá. Então, você, aterrorizado, recua para evitar que a Covid-19 pule a cerca e faça acampamento em seu quintal, mas o incauto cidadão se vê no direito de se sentir ofendido. Te encara com irritação e diz apontando para o próprio rosto: — Eu estou de máscara!
Quem mais aderiu ao acessório foram nossos políticos. Em seus rostos, as máscaras viraram uma peça de marketing muito eficiente, uma espécie de garoto-propaganda da política de combate à Covid-19. Em todas as fotos de perfil das redes sociais deles, lá estão elas. Destaque absoluto. Só se vê pano e olhos.
Escondidos atrás do acessório, nossas Excelências querem passar a imagem de que realmente estão preocupadas com a nossa saúde, de que o combate ao novo coronavírus é prioridade número zero, que podemos confiar neles porque são as pessoas certas nos lugares certos e que o importante para eles agora é salvar vidas, depois se pensa na economia. Toda uma enxurrada de conceitos e frases cuidadosamente fabricados por seus marketeiros.
No entanto, nos gabinetes assinam decretos que destoam de toda a pregação, liberam tudo para funcionar — opa, já ia me esquecendo: “com restrições” —, ainda que o número de casos do novo coronavírus seja crescente, em alguns casos fora de controle, e a pilha de cadáveres se torne cada vez maior. São os verdadeiros promotores das aglomerações que se vê pelas vias públicas, lojas, bares, restaurantes e shoppings; e os grandes disseminadores da doença e da morte. Mas nunca perdem a pose: apesar de tudo, insistem sempre que a vida é prioridade.
Ainda que a máscara já tenha caído.
CT, Palmas, 17 de junho de 2020.