Sou de uma geração que aprendeu a temer a Polícia Militar. Nos estertores da ditadura e início da nossa frágil democracia, a farda e a viatura nos impunham medo, não respeito. Todos conhecíamos histórias apavorantes. Meu professor Chiquinho, já marcado desde a infância pela poliomielite, foi citado aleatoriamente por alguém, que, sob tortura, precisava arrolar “comunistas”. Sem qualquer militância partidária, o professor Chiquinho foi preso, torturado e as sessões de choque resultaram numa cardiopatia que o levou à morte muito cedo, no início dos anos 1990.
Cada um da minha geração deve ter uma história parecida. Esse medo foi perfeitamente retratado na música “Acorda amor”, do genial Chico Buarque, que eterniza esse pavor no seguinte trecho:
“Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens e eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão”
Todo esse assombro que a Polícia Militar despertava na sociedade foi revertido em respeito ao longo desta ainda curta experiência democrática do Brasil, com ações importantíssimas, como a Polícia Comunitária e o Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd), que humanizaram os policiais militares aos olhos da população, a corporação foi totalmente integrada e é digna hoje de toda a nossa reverência e admiração.
Contudo, vivemos um momento estranho, que se materializou no episódio dos policiais de Goiás que cometeram claro abuso de autoridade, ao prender um dirigente petista por se recusar a tirar do capô de seu carro o adesivo “Fora Bolsonaro, genocida”. A despeito de partido, de a quem ele volta suas críticas. Policiais militares não podem agir institucionalmente de acordo com sua preferência político-partidário. Foi o caso. Como em épocas de redes sociais nada fica oculto, logo veio a público a foto do comandante dessa operação arbitrária posado de forma carinhosa ao lado de seu “mito”, o presidente Jair Bolsonaro.
Há meses que o historiador Marco Antônio Villa tem alertado para o fato de que Bolsonaro trabalha para instrumentalizar as PMs para seu projeto de poder. Os governadores vão perdendo a sua autoridade e começam as insurgências aqui e ali. No final de semana, durante os protestos contra o presidente da República em Pernambuco e no Ceará, vimos policiais militares, do nada, agredirem manifestantes. Uma pessoa perdeu um olho nessa ação abusiva.
São revoltantes e inacreditáveis, dignas deste tempo distópico, as cenas da prisão do professor Arquidones Bites, no caso de Goiás, sob a alegação de que ele ferira a Lei de Segurança Nacional, um entulho da ditadura militar. Mais: são inaceitáveis, e, nesse sentido, agiram muito bem tanto o delegado da Polícia Civil quanto da Federal, para onde tentaram levar o militante petista.
Que falta? Seremos agredidos no meio da rua por sermos críticos a Bolsonaro — eu sou, assumidamente, e adianto que votarei contra ele, em nome da marcha civilizatória do país, em qualquer um que possa derrotá-lo. Posso sumir ao sair de casa para buscar pão? Posso apanhar na rua a qualquer momento? Posso ser preso sob qualquer alegação? O que poderá ocorrer nas eleições de 2022? E no dia da votação? Quem for contra Bolsonaro não poderá sair de casa? Saddam Hussein, no Iraque, ganhava eleições desse jeito.
O policial militar tem todo direito de ter sua simpatia e até paixão político-partidária. Deve ser livre para defendê-la como cidadão nas ruas, nas redes sociais. Isso é necessário para que tenhamos uma democracia efetiva. Policial militar não pode ser cidadão pela metade. Sempre defendi isso. É absurdo sustentar que eles não tenham direito a expor seu pensamento e seus anseios.
Agora, não têm direito de usar da farda para impor sua preferência político-partidária. Isso é um crime contra a democracia, e os governadores precisam impor sua autoridade ou vão perdê-la, bem como perderão o controle da situação.
Aí estaremos numa democracia meramente formal e de volta a uma ditadura militar tácita.
Esse cenário que ficou materializado no lamentável e abusivo caso de Goiás, num país radicalizado pelas posições políticas, gera séria preocupação sobre o que esperar das eleições do ano que vem. OAB e Ministérios Públicos também precisam agir com muito rigor e zelo. São os grandes defensores da nossa democracia, que nunca esteve tanto em risco nesses 36 anos como neste momento.
CT, Palmas, 1º de junho de 2021.
Veja vídeos da prisão do professor Arquidones Bites: