O Tocantins tem a honra de contar com um de seus filhos mais ilustres na gênese de um fenômeno raro no Brasil: uma lei que pegou. É aquela história: jogamos a semente da norma legal na praça. Aí é preciso esperar para ver se germina ou não. Sempre que se entra nessa seara, a primeira coisa que vem à cabeça dos brasileiros é a [bem ou mal] dita caixinha de primeiros socorros. Lembram? Não teve quem não gastou uns bons trocados com essa jabuticaba que logo apodreceu.
O fato de ter comemorado uma década nesta quinta-feira, 4, é prova cabal de que a Lei da Ficha Limpa brotou. Mais: seu tronco cresceu, se desviando das tentativas de desfigurá-la e de machados que, vez e outra, quiseram podá-la, e se consolidou. A legislação impede que maus gestores se candidatem se no exercício de cargos públicos sujaram a ficha com atos impróprios para quem deveria cuidar da população e dos recursos que ela entrega todo mês ao fisco.
A lei deixa o tocantinense duplamente satisfeito: tirou de circulação muito mal elemento que queria o poder para dele se servir e, como afirmei no início, seu texto tem as digitais de um pedroafonsino ilustre, o ex-juiz e advogado Márlon Reis.
Como um dos “pais” da lei, Márlon lembrou bem em entrevista à Coluna do CT, que antes da Ficha Limpa nenhuma candidatura era barrada. Qualquer gatuno poderia concorrer, a despeito das falcatruas mais diversas que tivesse engendrado como prefeito, governador, presidente, secretário, ministro ou qualquer cargo público que houvesse exercido.
Muito dinheiro para propaganda eleitoral, um excelente marketeiro e pronto. Era a fórmula que garantia ao larápio estar de novo com a chave dos cofres públicos nas mãos. Faltava algum mecanismo para moralizar minimamente o processo eleitoral num item muito importante, a oferta de candidatos.
Claro que a Ficha Limpa, por si só, ainda não basta para garantir o amadurecimento pelo qual as eleições precisam passar. Há outros temas vitais, como o voto distrital e o próprio financiamento, que, hoje público, ainda gera desconfianças, dos quais a classe política vai se desviando indefinidamente. Mas a lei de Márlon e companhia toca no ponto de partida para a evolução que buscamos: quem pode disputar.
Contudo, não é à toa que os políticos alvo da Ficha Limpa são chamados de “raposas”. Buscaram uma alternativa para se perpetuar no poder, mesmo quando proscritos pela aniversariante do dia. A solução foi caseira. Já que não são elegíveis, empurraram para a disputa as pessoas de sua maior confiança. Foi assim que passou a prevalecer um novo axioma: por trás de muitos prefeitos e prefeitas pode haver um ficha suja.
Esposas e filhos foram guinados de figurantes de poucas falas a ventríloquos de inelegíveis. De molho após a ação do alvejante legal, o político faz o parente se sentar no seu colo e mexer a boca quando ele assim mandar. Eleito, o familiar desempenha o papel de “rainha da Inglaterra”, enquanto o manche segue na mão de quem jamais deveria pilotar a máquina pública.
Em alguns casos, a Ficha Limpa já eliminou quase uma família inteira. Marido, esposa e filhos, todos estão inelegíveis. No desespero, a “velha raposa”, que quer continuar no poder enquanto houver um último sopro de vida pública e incautos que o idolatre, lança o cunhado, irmão e até apela para a sogra.
Apesar da familiocracia tentar sabotar a Ficha Limpa, e muitas vezes até conseguir, não há dúvida de que a lei do pedroafonsino Márlon e companhia já deu uma grande contribuição para sanear a oferta de candidatos.
Precisamos agora é melhorar o eleitorado.
CT, Palmas, 4 de maio de 2020.