Sabia que o ex-ministro da Saúde Nelson Teich teria vida curta na pasta desde que assisti na TV ex-assessores darem testemunhos sobre ele. Homem de ciência, responsável, respeitado, correto, sério, ético. Com esses adjetivos, é óbvio que não tinha perfil para o governo Jair Bolsonaro. Nas poucas vezes que o então ministro apareceu em sites e TVs nessa passagem relâmpago, eu sempre me perguntava o que ele fazia ali. Aliás, não tenho dúvidas de que o próprio Teich também se fazia o mesmo questionamento.
Ainda não chegamos ao pico da Covid-19 no Brasil. As próximas semanas serão as nossas piores nessa luta contra um inimigo irracional, que não respeita ninguém, ignora a ciência e não se submete a leis, regras e normas. Não me refiro ao novo coronavírus, mas ao presidente Bolsonaro. Ele parece que está determinado a impor sua visão anticiência à sociedade brasileira, o que significa que vai elevar a pressão ao grau máximo para obrigar governadores e prefeitos a retirarem as medidas de quarentena para que a economia volte a funcionar a todo vapor. Mas aí o outro inimigo não vai deixar, o vírus.
[bs-quote quote=”Como ser competente e humano, se o presidente não tem qualificação e tampouco demonstra qualquer empatia, mesmo diante da mais profunda dor de seu povo? ” style=”default” align=”right” author_name=”CLEBER TOLEDO” author_job=”É jornalista e editor da Coluna do CT” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/09/CT-trabalhado-180.jpeg”][/bs-quote]
Bolsonaro ainda vai querer recrutar para o lugar de Teich alguém irresponsável o suficiente para mudar o protocolo para a administração da cloroquina, que o presidente vê como a panaceia para a Covid-19. O presidente insiste que o medicamento seja ministrado também para os casos leves do novo coronavírus.
O problema será encontrar um nome de ciência, responsável, respeitado, correto, sério e ético, que se disponha a embarcar nessa aventura totalmente inconsequente em que ele quer jogar a saúde do brasileiro.
O uso cloroquina ou hidroxicloroquina não é recomendado para o tratamento inicial da Covid-19. E são muitos estudos que apontam nesse sentido e é o que o mundo todo está fazendo. Somente nos casos extremos que lançam mão desse remédio. No entanto, o presidente não quer saber qual é o pensamento predominante da ciência sobre tema tão complexo. É o dele que deve prevalecer.
Da mesma forma sobre o isolamento social. Para uma doença sem remédio nem vacina e que se dissemina rapidamente, a saída tem sido manter as pessoas reclusas o máximo de tempo possível para que a contaminação ocorra em níveis que o sistema de saúde possa absorver aqueles que precisarem de internação e UTI. É isso que significa o novo clichê “achatar a curva”. Se muitos ficarem doentes ao mesmo tempo, a curva explode feito foguete, atravessa o teto da capacidade de atendimento e não haverá como socorrer a todos. No inverso, se o volume de doentes não extrapolar a capacidade do sistema (quantidade de equipamentos e profissionais), todos que precisarem terão atendimento digno e muitas vidas serão salvas.
Qual a dificuldade para compreensão? Só para os mais lobotomizados dos bolsominions, cegamente apaixonados por seu “mito” e que aceitam qualquer teoria conspiratória que o Gabinete do Ódio produza. Fora eles, pessoas com o mínimo de bom senso entendem.
Bolsonaro faz um cálculo eleitoral. O projeto de seu segundo mandato, aposta ele, depende do sucesso da economia brasileira até 2022. Se a economia estiver bem, rumina, reeleição garantida. O raciocínio seria o correto se não fosse uma pandemia de escala planetária no meio do caminho. Suas chances de conseguir mais quatro anos poderiam ser tão grandes quanto, e com a vantagem de não estarem escoradas na economia, se tivesse uma condução competente e humanizada desta crise sanitária. Porque recessão não será um problema exclusivo dos brasileiros, mas de todo o mundo.
Contudo, para ser esse líder que o Brasil precisa neste momento tem que ter perfil. Como ser competente e humano, se o presidente não tem qualificação e tampouco demonstra qualquer empatia, mesmo diante da mais profunda dor de seu povo? No dia em que atingimos a triste marca de 10 mil mortos, Bolsonaro ensaiou um churrasco e, diante da repercussão ruim, preferiu serpentear com o jet ski pelo Lago Paranoá, sem dar uma nota sequer de solidariedade aos brasileiros e às famílias enlutadas.
No domingo,10, Dia das Mães, o hoje ex-ministro Nelson Teich postou mensagem nas redes sociais de consolo àquelas que não tiveram nem o direito de se despedir de seus filhos, mortos pela Covid-19. A iniciativa desagradou profundamente Bolsonaro.
Questionado em alguns momentos sobre o número assustador de mortes de brasileiros, o presidente esbravejou primeiro que não é coveiro e depois disparou um gélido “e daí?”.
A luta contra a Covid-19 é árdua e infelizmente teremos muitas baixas. Mas sabemos o caminho para enfrentar essa doença e não há dúvida de que vamos superá-la em alguns meses. Com mais ou menos vítimas, isso depende de como nos comportaremos como Nação.
Aí que o outro inimigo vira um imenso problema. Um presidente que cria obstáculos na guerra contra o novo coronavírus, insiste em medidas contrárias à ciência, quer levar às ruas neste momento milhões de pessoas, sob o risco de multiplicar absurdamente muitas vezes o número de mortes e que gera crises políticas desnecessárias em paralelo à guerra contra o vírus, pulverizando um esforço que deveria ser concentrado.
Para o depois da pandemia também cuida de já ir jogando pedras pelo nosso caminho, ao alimentar a desconfiança dos investidores no País e instigar diariamente crises institucionais com os demais Poderes, deixando-nos à deriva, sob uma permanente instabilidade política, num mar que já está mais que suficiente bravio.
Esse inimigo irracional, que não respeita ninguém, ignora a ciência e não se submete a leis, regras e normas pode criar mais estragos para o futuro do Brasil do que a Covid-19.
Não tenho dúvida disso.
CT, Palmas, 15 de maio de 2020.