Sou de uma geração que viveu a hiperinflação, que via as infernais máquinas de remarcar preços em operação alucinada toda vez que entrava em supermercado e que recebia o salário com metade do poder de compra do mês anterior, enquanto os patrões faturavam alto aplicando seu dinheiro no overnight. Os aumentos eram tão absurdos que fazíamos as compras de alimentos para 30 dias, não semanalmente como passou a ocorrer a partir do real. Um tempo que não deixou nenhuma saudade.
A maior conquista do povo brasileiro não foi o Bolsa Família ou qualquer outro programa social, ainda que muito importantes para amenizar as abismais desigualdades sociais, de um país historicamente injusto e cruel com seu povo mais necessitado. Nossa maior vitória foi a estabilidade da moeda, porque a inflação é o imposto mais cáustico para a diminuta renda da camada mais pobre.
Sempre costumo dizer que uma família de classe média que consome quatro pãezinhos por dia, se custar 10 ou 50 centavos ou mesmo 1 real, continuará levando para casa sua cota diária. Os mais pobres, não. Diminuirão a quantidade de pães que comem. Por isso, os privilegiados levam mais tempo para sentir os efeitos dos aumentos de preço do que a parcela carente da população. E já chegamos ao ponto em que todos estamos sendo impactados pelos efeitos dramáticos da majoração de produtos e serviços.
A jornalista Miriam Leitão tem um belíssimo livro sobre a conquista da estabilização econômica no Brasil, Saga brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda, uma leitura que vale a pena para todos, sobretudo para aqueles que não viveram a realidade da hiperinflação. A autora lembra que a República começou no País produzindo uma crise inflacionária, com a trapalhada do nosso primeiro ministro da Fazenda, Rui Barbosa, com seu encilhamento, e completou 100 anos em 1989, “no alvorecer da redemocratização, na pior crise inflacionária de sua história”.
Nos anos 1950, a inflação passou a ser vista como combustível para o crescimento — tese esdrúxula que alguns ainda hoje defendem — e nos anos 1960 o governo ditatorial dos militares criou a correção monetária, reajustando os preços pela inflação passada. Instalou-se, assim, nossa cultura inflacionária, que depois custou tanto para ser derrotada. Desde então, até 1994, volta e meia cortava-se três zeros e mudava-se o nome da moeda (cruzeiro, cruzado, cruzado novo).
Vivemos tanto com a inflação que ela se incorporou à cultura popular. Em 1977, o sucesso era Saco de feijão, de Francisco Santana, na voz de Beth Carvalho, que em seu refrão dizia: “De que me serve um saco cheio de dinheiro / Pra comprar um quilo de feijão”. Outro trecho era mais incisivo:
“No tempo dos derréis e do vintém
Se vivia muito bem, sem haver reclamação
Eu ia no armazém do seu Manoel com um tostão
Trazia um quilo de feijão (E agora gente?)
Depois que inventaram o tal cruzeiro
Eu trago um embrulhinho na mão
E deixo um saco de dinheiro
Ai, ai, meu Deus”
Na década de 1980, destacou Miriam Leitão em sua obra, “o Brasil viu, então, a força destruidora do inimigo”, e constata: “Na longa caminhada até ter uma moeda, o povo brasileiro provou que estava disposto a tudo e tudo suportaria. A cada nova tentativa, a esperança tomava conta dos cidadãos”.
A inflação está entre as principais razões da ruína dos governos ditatoriais dos militares e arrasou com o governo José Sarney. Fernando Collor se elegeu em 1989 prometendo derrotar o tigre da inflação com um tiro só. Descarregou toda a arma e não deu conta. Inclusive, aumentou a desgraça das famílias brasileiras confiscando a poupança, o que anos depois o levou a pedir desculpas, mas quem morreu de infarto, suicídio e outras causas em decorrência da irresponsabilidade não puderam respondê-lo.
A vitória por fim só veio em 1994 com a Unidade Real de Valor (URV) e depois, em 1º de julho, com o real. Lembro que uma das coisas mais curiosas, com o lançamento do novo dinheiro, era ter moedas nas mãos. Fazia muitos e muitos anos que não as tínhamos porque a inflação era tanta que os valores das cédulas precisavam ser muito altos, 1 mil, 5 mil, 10 mil, 50 mil.
Pensei tudo isso quando saía do supermercado na noite dessa quinta-feira, 19. Fiquei apavorado em ver o tanto que os alimentos encareceram. Como os mais pobres estão se virando? Se pesa para quem tem um pouco mais de condições, me vem à mente a situação vivem hoje os mais necessitados.
Enquanto o drama do passado volta para nos assombrar, o presidente da República, Jair Bolsonaro, tem outras preocupações mais prementes: se as urnas eletrônicas vão roubar seus votos, fazer ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e, aos finais de semana (afinal, ninguém é de ferro), brincar em motociatas pelo País pagas pelo contribuinte.
CT, Palmas, 20 de agosto de 2021.