Sempre tenho dito neste espaço que a maior crise do Brasil não é econômica, mas de líderes. Na verdade, a falta de rumo que vivemos, e que nos jogou nas mãos de um Jair Bolsonaro qualquer, é justamente por esse vácuo. O povo precisa de bons líderes porque os seguem na caminhada, que pode desembocar numa terra farta, que “mana leite e mel”, nas palavras bíblicas, ou num abismo, como está ocorrendo com o Brasil.
Conheço pessoas que não acompanham mais o jornalismo profissional. Só se informam pelos canais bolsonaristas e pelas próprias lives do presidente da República às quintas-feiras. São milhões por todo o País os que se entregaram ao fanatismo e que absorvem esses produtos midiáticos repletos de fakes news e mentiras das mais deslavadas, mas recebidas como verdades inquestionáveis. O jornalismo profissional não é perfeito, mas é plural. Abre espaço para diversos pensadores, da direita à esquerda, e, na comparação, o leitor, ouvinte, telespectador formam sua opinião. Os fatos são checados, as fontes podem ser consultadas, e isso dá credibilidade ao que dizem.
No entanto, a imprensa profissional é uma das instituições que o bolsonarismo, sob a batuta do presidente, quer desacreditar. A intenção é minar as bases do Estado Democrático de Direito, jogando a população contra veículos de comunicação, Judiciário e Congresso. É parte do chavismo do qual Bolsonaro tem se mostrado, na prática, um adepto — nesse campo, outra estratégia é armar a população para ter milícias a seu serviço. Tudo isso coloca em sério risco nossa jovem democracia.
No que diz respeito à pandemia, a gravidade da péssima liderança de Bolsonaro é maior porque tem resultado em milhares de mortes de brasileiros, um total de 255.720. Sim, o presidente da República não é o único, mas é o maior responsável pelo genocídio que estamos assistindo. Como líder, é o espelho de seus liderados, que o escutam e seguem exatamente o seu exemplo.
O presidente da República, que esse cidadão tanto admira, diz que a Covid-19 é “uma gripezinha”, então, por que vai levar a sério as autoridades sanitárias? Garante que é só tomar uma tal de cloroquina ou fazer “um tratamento precoce” e está tudo resolvido. Por que duvidar se é seu ídolo maior — o “mito” — que está dizendo? O presidente da República diz que isolamento social não funciona, então, por que vai acreditar que é a principal forma de impedir a contaminação, como afirmam os especialistas e demonstram estudos e exemplos mundo afora? O presidente da República diz que não usa máscara e que tem até “um estudo aí” que “prova” que esse acessório é prejudicial. Por que o seguidor usaria? Se os meios de comunicação trazem um desmentido da instituição responsável pelo suposto estudo, o sujeito, que não acredita na imprensa profissional, prefere ficar com a versão de seu líder. O “mito” ainda disse que não existe comprovação da eficácia da vacina, que não vai tomá-la e que o imunizante poderá até transformar a pessoa num jacaré, então, por que esse cidadão fanatizado vai se arriscar?
Em todo esse enredo de mentiras existe um projeto de sabotar o esforço do País para conter o avanço da Covid-19. Vemos as autoridades em pânico, tentado convencer seus cidadãos de que eles devem ouvir a ciência, se isolar para não adoecer porque não há mais UTIs disponíveis. A reação emocionada do governador da Bahia, Rui Costa, nessa segunda-feira, 1º, ao pedir para as pessoas respeitarem o isolamento, é uma demonstração desse desespero de quem não tem mais o que fazer senão apelar ao bom senso.
Mas como falar em bom senso para quem já foi convencido por seu líder maior de que todas as outras autoridades e instituições querem o mal da sociedade e do País e que unicamente ele — “o mito” — quer o bem? Por que essas pessoas fanatizadas seguirão os líderes regionais — prefeitos e governadores — se o presidente da República diz que eles só querem destruir a economia, se o bolsonarismo — a nova religião dos incautos — garante que esses políticos só querem roubá-los, aproveitando-se da crise sanitária?
É, sim, uma estratégia fascista, em que se tenta personalizar todo o Estado numa única pessoa. Ela é a única que se salva nesse mar de corruptos, bandidos e incompetentes que são todos os outros na gestão pública. Só esse ser iluminado personifica o bem, a bondade, o avanço e o desenvolvimento. Mas o que o fascista apresenta para provar que está conseguindo melhorar o País? Nada. Por quê? Porque prefeitos e governadores não deixam, já que querem o isolamento às custas da destruição da economia e dos empregos. Porque o Supremo Tribunal Federal não deixa – “tirou todos os poderes do governo federal” [uma mentira absoluta, mas o “mito” disse que é assim] –, porque a imprensa só quer derrubar o presidente, porque o Congresso não vale nada e não deixa o presidente fazer.
Dessa forma, qual a única saída que o bolsonarismo apresenta ao País? Fechar o STF, fechar o Congresso, fechar os veículos de comunicação “inimigos”, a volta do AI-5. Sem essas instituições, que garantem a efetivação da democracia mas atrapalham o “mito”, o Brasil, enfim, exterminará a corrupção e se encontrará com o desenvolvimento e o pleno emprego. “Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E, apesar de tudo, eu represento a democracia no Brasil”, admitiu Bolsonaro no dia 20.
É nesse processo de manipulação em que, de um lado, se vende como a única solução possível e, de outro, desacredita todas as instituições, que Bolsonaro vai destruindo o Estado Democrático de Direito para se impor como poder absoluto. Um genocídio é parte desse projeto, porque gera a sensação de incompetência das demais autoridades e dos cientistas e isso pode aumentar a percepção de que Bolsonaro estava certo porque tudo o que foi feito contra a vontade dele não impediu o morticínio de brasileiros. “Desculpe aí, pessoal, não vou falar de mim, mas eu não errei nenhuma desde março do ano passado”, disse deslavadamente nessa segunda-feira, 1º.
Nunca vai expor que ele sempre, o tempo todo, atuou para que tivéssemos hoje o máximo de mortos, incentivando a ocupação das ruas, a aglomeração, o não uso de máscaras e colocando as vacinas em dúvida. Dentro de sua estratégia, o genocídio é fundamental para promover justamente essa falsa percepção de que o Estado Democrático de Direito fracassou. Ele não dá a mínima importância às centenas de milhares de brasileiros mortos e de famílias enlutadas. Nunca se referiu às vítimas com sentimento de solidariedade, mas como naturalização da barbárie que ele mesmo instalou no Brasil. “E daí?”, essa foi sempre a reação do presidente da República. Ou: “Não sou coveiro”.
Tivemos líderes que erraram na mão no início da pandemia, como Boris Johnson, do Reino Unido, mas que reconheceram isso e corrigiram a rota, porque seu objetivo maior é salvar vidas. Não é o caso de Bolsonaro, que não liga para vivos nem para mortos. O que importa para Bolsonaro é ele mesmo, sua perpetuação no Poder. Com esse intuito, tem que continuar manipulando seus fanáticos e desacreditando a democracia, que avalia como o grande empecilho de seu projeto de Poder.
Em todo o mundo hoje, é pouco provável que exista um exemplo de liderança mais nefasta.
E as instituições democráticas? Vão continuar apenas dando nota de repúdio?
CT, Palmas, 2 de março de 2021.