A prefeita da cidade paraguaia de Carmello Peralta, Mirna Orrego de Segovia, é suspeita de receber os R$ 600 do socorro emergencial pago pelo governo brasileiro para as pessoas sem condições mínimas de sobrevivência nesta pandemia da Covid-19. O ataque indevido contra o auxílio para os necessitados não vem só do exterior. Cruzamento de dados dos Ministérios da Defesa e da Cidadania identificaram que 73,2 mil militares ativos, inativos, temporários, pensionistas e anistiados, também embolsaram indevidamente a ajuda federal.
A lista dos bem-colocados na sociedade que engarfaram o pouco que o País tem para socorrer os milhões que realmente precisam neste momento de profunda crise não pára por aí. Em Santa Catarina, o Tribunal de Contas detectou 4.753 servidores municipais e estaduais que teriam pedido a ajuda. Levantamento do governo catarinense mostra que em torno de 700 funcionários do Estado foram indevidamente favorecidos.
Pesquisa qualitativa do Instituto Locomotiva flagrou um terço das famílias das classes AB, com renda mensal mínima de R$ 1.780 por pessoa, solicitando o socorro. Pior: 69% delas conseguiram. Enquanto isso, parte considerável dos que realmente precisam não obteve sucesso.
Os tocantinenses também passaram a vergonha de saber que existe em seu meio esse tipo de gatuno com recursos suficientes para sobreviver à pandemia, mas que descaradamente roubam de quem nada tem. A Controladoria Geral da União (CGU), em parceria com o Tribunal de Contas do Estado (TCE-TO), identificou 4.112 servidores recebendo irregularmente o auxílio, dos quais 500 omitiram na solicitação o local de trabalho.
A CGU ainda detectou que 1.611 desses “mãos grandes”, alguns com salários superiores a R$ 7 mil, já vinham afanando os escassos recursos para socorrer necessitados em outro programa, o Bolsa Família.
As pessoas que têm direito a essas parcelas exíguas do auxílio emergencial são aquelas que tínhamos que tirar das ruas para preservar suas vidas sem condená-las à mais completa falta de condições de sobrevivência. São trabalhadores informais, brasileiros que vendem, por exemplo, salgadinhos e sorvetes nas vias públicas. Como alguém pode ter a cara dura de roubar essas pessoas em tamanha situação de desamparo?
Não, não é o governo que está sendo roubado. Definitivamente não é. Nós, brasileiros, temos essa imensa dificuldade de compreender que o Estado não existe, é mera abstração. Paupável são os cidadãos que pagam impostos e os cidadãos em situação de vulnerabilidade que necessitam que parte dos recursos coletados pelo Poder Público seja revertida para uma rede que lhes garanta a mais básica proteção.
Em última instância, aquela real, quem está sendo roubado não é um ente chamado “Estado”, mas o José, a Maria, o Pedro, o Joaquim, ou seja, pessoas de carne e osso, brasileiros materialmente destituídos e que expelem, diariamente, sangue, suor e lágrimas para colocar uma miséria de comida na boca de seus filhos.
São as maiores vítimas dos esquemas bilionários que impregnam a máquina pública, tal qual a Covid-19 no corpo de suas vítimas, e que, como também o vírus, destroem o organismo social. No entanto, a proteção mínima de que precisam não lhes é tirada somente por essa engrenagem monstruosa. Também são dilapidados por quem vai às ruas protestar contra os políticos que alimentam essa máquina corrupta, mas age com desfaçatez para, em posse do suficiente, arrancar o pouco daqueles que nada tem.
Quem assim procede é tão corrupto quanto aqueles contra os quais grita nas ruas palavras de ordens repletos de clamores por igualdade, justiça e honestidade. É cúmplice da fome que fustiga brasileirinhos em situação da mais aguda e desumana fragilidade, que não possuem crédito, muito menos a quem recorrer. Culpado pela morte daqueles que, sem o socorro, se expõem nas ruas porque ou sucumbem pela Covid-19 ou diante dos armários, geladeira e estômagos vazios. Cúmplice duplamente, triplamente, quadruplamente, já que no casebre desses irmãos esquecidos vivem muitos em pouquíssimo espaço. Idosos, doentes, subnutridos, todos à mercê de um mal que, ao contrário do que querem fazer crer os que rosnam raivosos da mais alta cúpula de Brasília, não se trata de uma “gripezinha”, uma vez que promove um verdadeiro genocídio no País.
Por isso, a pergunta indignada do título: o que leva alguém a roubar o socorro emergencial de míseros R$ 600 de quem realmente precisa e nada tem para sobreviver numa época em que não há como trabalhar em segurança?
De uma perspectiva humana, não consigo entender.
CT, Palmas, 23 de junho de 2020.