Esses dias alguém postou nas redes socais o seguinte: “Como você achou que a sociedade que faz gato na energia, dá atestado médico em véspera de feriado, que rapina mercadoria de caminhão acidentado, iria se comportar coletivamente em uma pandemia?” As imagens de bares apinhados de incautos refratários em Araguaína, na noite de sexta-feira, 26, quando as autoridades, agoniadas, tentam conter o avanço da Covid-19, é a materialização da frase desse internauta.
Desde o início dessa pandemia, nunca tivemos um lockdown digno do nome em qualquer lugar do Brasil. Não sei se a nossa cultura – marcada pelo “jeitinho”, pelo gato na energia, pelo atestado médico fake e pelo assalto a caminhão acidentado – permitirá que o façamos, como se deveria, em qualquer momento da pandemia. No entanto, uma coisa é certa: se não houver colaboração da população, não haverá outra saída que seja de iniciativa de prefeitos ou do governador.
Na verdade, alguns dos principais cientistas brasileiros já têm defendido 21 dias de lockdown nacional para minimizar os estragos que a Covid-19 vai causar nas próximas semanas. E não serão poucos. As previsões são absurdamente catastróficas e os brasileiros caminham para um luto nacional, de muita dor, que vai marcar terrivelmente a nossa história.
Num país de baixo nível educacional, em que a anticiência é estimulada pelo próprio presidente da República — é preciso sempre frisar: um beócio indigno do cargo que ocupa —, as pessoas sequer conseguem ter essa compreensão. Não entendem a gravidade do momento. Pior: essa “insanidade de rebanho” fez com que a tragédia se naturalizasse.
Claro, porque quem está sofrendo é o outro. Então, o problema é dele. Nesse domingo, 28, postei nas minhas redes sociais: “A insensibilidade de nossa classe média, que continua apoiando cegamente o beócio, dando as costas para genocídio que ele comete, também é responsável por este mar de sangue que assistimos. São nossos ‘cristãos’”. Temos uma cristandade de araque [ao absurdo de igrejas desrespeitarem medidas sanitárias que salvam vidas!]. As pessoas se mostram totalmente incapazes de ter empatia com a dor do próximo.
Numa belíssima reflexão publicada nesse domingo, o jornalista Leonardo Sakamoto afirmou que os recordes de mortes por Covid-19 confirmam a vitória do presidente Jair Bolsonaro em seu projeto genocida. Não é exagero, é isso mesmo. Veja: na semana em que tivemos o maior número de mortos num só dia [1.582 brasileiros perderam a vida em 24 horas, o equivalente a cinco Boings], Bolsonaro pregou contra a máscara — mentindo com uma pesquisa fake, algo impensável para um presidente que tivesse a intenção de combater a pandemia —, voltou a colocar em dúvida a eficácia da vacina, promoveu aglomerações e ameaçou governadores que tomarem medidas em prol do isolamento social para proteger suas populações — falácia de pseudo valentia, já que não tem qualquer poder para isso.
Assim, Sakamoto afirma em seu excelente artigo que “o sucesso do processo de banalização da morte fomentado por Bolsonaro mostra que o Brasil vai sair dessa crise sanitária mais à sua imagem e semelhança: um país mais insensível à dignidade humana, com cada um lutando, como ele, por sua própria alegria e sobrevivência. E que se dane o resto”.
É bem isso.
Tenho dito sempre aqui e nas redes sociais que esta pandemia revelou que ainda somos um país de profunda ignorância e de abismais desigualdades. Mas também está derrubando o mito idílico que nos apresentava como cordiais. Está claro que toda a insensibilidade que temos visto mostra justamente o contrário.
Como não dá para apostar no espírito humanitário que boa parte de nossa sociedade mostrou não possuir, que o pragmatismo possa funcionar. Assim, se querem evitar o lockdown, que tenham uma postura condizente com o difícil momento que enfrentamos.
Porque é preciso ficar claro que quem fecha cidade não são prefeitos nem governador, mas o mau comportamento da sociedade.
CT, Palmas, 1º de março de 2021.