Se tem um crime que não merece perdão, mas rigorosa punição, é o cometido contra os parcos recursos disponíveis para o combate à Covid-19. É simplesmente indefensável, e Ministérios Públicos Federal e Estadual e a Polícia Federal precisam mesmo ir a campo duramente contra criminosos que se aproveitam da pandemia e do desespero dos profissionais de saúde por respiradores e equipamento de proteção individual (EPIs) para assaltar a grana do contribuinte.
Não há dúvida de que a flexibilização das regras fiscais vai propiciar o ambiente favorável à ação de corruptos e corruptores. Outra preocupação, a Coluna do CT trouxe em entrevistas no início da pandemia, que é a utilização desse relaxamento da Lei de Responsabilidade Fiscal para maquiar as contas de maus prefeitos, uma vez que é último ano de mandato e terão que entregar as gestões azeitadas. No entanto, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) já avisou que estará atento, e Suas Excelências terão que explicar, nos mínimos detalhes, os gastos com a pandemia. E não pode ser diferente.
Diversos prefeitos reclamam comigo desde o início da pandemia da variação absurda de preços dos materiais utilizados por profissionais de saúde para o enfrentamento do novo coronavírus. Os valores de máscaras, luvas, álcool em gel e outros itens, geralmente baixos, por unidade, dispararam com o aumento brusco da demanda e diante da pouca oferta. Assim, há duas questões de mercado que precisam ser consideradas aqui.
A primeira é a legal e a natural de uma economia livre: a falta de alguns produtos exige maior desembolso por municípios e Estados pelo desequilíbrio entre oferta e procura. A segunda — essa, sim, precisa de atuação forte do Poder Público — é o abuso cometido num momento de escassez, quando empresas e gestores se aproveitam das brechas na lei para desviar recursos públicos. Isso deve ser combatido, sobretudo porque esse dinheiro roubado significa vidas sacrificadas pela maior crise sanitária da humanidade nos últimos 100 anos.
No entanto, é necessário o devido cuidado dos órgãos de controle e de polícia para não marginalizar aqueles que tentam cumprir sua obrigação. É o que se viu nesta quarta-feira, 3, com a Operação Persanale, para investigar possível superfaturamento em dois contratos de compras de 12 mil máscaras de proteção, com custo unitário de R$ 35, totalizando em R$ 420 mil.
Apanho demais por isso, sem problemas, mas sempre fui e sempre serei um crítico dessas operações pirotécnicas, em que se manda para os e-mails das redações fotos e vídeos do interior dos locais investigados, onde as emissoras de TV, quase sempre, chegam juntas com as viaturas policiais — e nunca se sabe quem as chamou. Como veículo, é sensacional, porque dá muita audiência. Mas, do ponto de vista dos direitos individuais, promovem um prejulgamento absurdo e a polícia passa a ser Justiça. E julga sem o contraditório e sem dar sentença.
Por conta dessa busca pelos holofotes da mídia com show pirotécnico e com salto duplo twist carpado — consagrado pela nossa baixinha-gigante Daiane dos Santos no devido campo, o da ginástica olímpica —, quem poderia ser inocente nunca mais será, ainda que absolvido em todas as instâncias do mundo. Já está condenado eternamente diante da opinião pública por fogos de artifício e movimentos espetaculares.
É de se perguntar por que se faz uma busca e apreensão. A Justiça determina, a pedido do Ministério Público, e a polícia vai a empresas, escritórios e residências. Fazer o quê? A partir de indícios, busca provas para dar consistência à investigação em andamento. Assim, não existe nada de concreto, apenas meros indícios, que podem ou não ser confirmados pelo material encontrado, e ainda por depoimentos, quebra de sigilos telefônico, fiscal e bancário, entre outros. Mas, no ato de busca e apreensão, não dá para dizer se o alvo é culpado ou inocente. Daí a aberração de toda pirotecnia que induz a um prejulgamento.
Um outro absurdo foi corretamente barrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a tal condução coercitiva, que, banalizada, projetou nacionalmente o “Japonês da Federal”. Era parte do show pirotécnico com o duplo twist carpado, em que o suspeito se via apresentado ao público como troféu e uma espécie de Judas em Sábado de Aleluia. Tudo isso representa um jacobinismo altamente perigoso, que pode descambar em campos tenebrosos.
No caso da operação desta quarta, a situação é pior porque a denúncia partiu de quem já está condenado nas redes sociais, a Secretaria Estadual da Saúde (Sesau). O próprio MPF confirmou à Coluna do CT o que a pasta disse em nota e em release à imprensa logo após a chega da PF: foi a própria Sesau que, ainda em março, acionou o órgão de controle para que investigasse. A secretaria informou que a aquisição desses produtos foi feita diante de “uma urgente necessidade”, já que os profissionais de saúde não podiam ficar sem os EPIs e álcool em gel, mas, como o preço encontrado no mercado chamou a atenção do governo, imediatamente o Estado provocou a Procuradoria para a devida apuração.
O irônico ainda é que não é possível ter mais detalhes, conforme o MPF, porque o caso corre em segredo de Justiça. Com isso, quem denunciou ficou de bandido na história e, diante da opinião pública, não há o que fazer. Foi rito sumário, sentença dada e consumada: viaturas em frente à secretaria, 20 policiais na sede, fotos e vídeos distribuídos à imprensa. Só não se fez uma única menção de que tudo isso ocorreu graças à representação do próprio alvo da operação.
Gestores dos 139 municípios e de outras secretarias estaduais devem estar se perguntando se compensa acionar o MPF para que investigue possíveis ações de bandidos que tentam se aproveitar do momento de exceção. Afinal, pela pirotecnia que assistiram, quem vai acabar sendo julgado e condenado em poucos minutos serão eles mesmos.
Se houve má conduta de secretário, servidores ou quem quer que seja, os culpados precisam pagar com cadeia e ressarcir o cidadão. Mais: como vivemos uma situação de guerra, a pena tinha que ser bem mais elevada. É inconcebível que se assalte os cofres públicos num momento tão delicado em que temos que vencer essa doença que tira vidas e empregos, paralisa a sociedade e provoca dores indeléveis.
Por isso, a PF precisa e deve fazer seu trabalho. Ela tem sido vital para a limpeza do Brasil nesses últimos anos. Não se defende o contrário. Cumpra a determinação judicial de busca e apreensão nas secretarias e onde quer que seja. Agora, deixe pirotecnia para o São João e o duplo twist carpado para os ginastas com o talento de Daiane dos Santos.
Esse show midiático só serve para prejulgar suspeitos e atrapalhar justamente o mais importante: o combate aos assaltos aos poucos recursos de que dispomos para eliminar a Covid-19.
CT, Palmas, 3 de junho de 2020.