A grande mancha azul salpicada de nuvens algodoadas era seguida por faixas de amarelo, laranja e rosa, que desciam pelo horizonte, misturavam-se e coloriam o espelho d’água do Lago de Palmas. O pôr do sol divinamente matizado na Praia da Graciosa sobrepunha-se ao cinza que cingira sua vida e, se esse cenário deslumbrante não o tornava feliz, pelo menos afastava sua mente da amargura em que mergulhara nos últimos anos. Em pouco mais de uma década, foram as empresas, a família e aqueles que imaginava serem amigos.
Sebastião Migliotti enfiou a mão entre os tufos de cabelos raleados, com os quais se esforçava para encobrir o descampado que os anos fizera-lhe no alto da cabeça, e contemplou os catamarãs ancorados no píer. O mais alto e sofisticado já foi dele. Um dos primeiros bens que teve que vender, comprimido pela crise nos negócios, logo após as eleições de deputado de 2014.
Num abrir e fechar de olhos, o sol mergulhou no horizonte deixando um extenso cinturão avermelhado, sombras n’água e centenas de luzes tremeluzentes no Luzimangues, na outra margem do lago. Só então Migliotti deu por si e subiu, com as pernas pesadas e uma delas claudicante, os poucos lances de escada do píer. Dezenas de turistas que fotografaram a grande atração da capital do Tocantins, o pôr do sol da Praia da Graciosa, fervilhavam pelo calçadão para tomar os bares e restaurantes da orla.
Júnior Eduardo já ocupava a mesa dos velhos tempos de fartura e levantou-se ao ver o amigo e ex-patrão aproximar-se. Sorriso sempre dócil num semblante leve, festivo, abraçou Migliotti.
– Chefe!
O outro devolveu apenas um ricto, sentando-se após o rápido aperto de mão, com dificuldade para acomodar a barriga.
– Como está? – Júnior Eduardo perscrutava num olhar oblíquo o aspecto geral do ex-patrão.
– Daquele jeito… – Migliotti evitava mirar o amigo. Sentado de frente para o lago, bem que queria abrandar todo amargor absorvendo as boas energias que acreditava vir do crepúsculo.
Um garçom aproximou-se.
– Estou duro – antecipou o ex-patrão, num sussurro seco e acre, ainda fitando o horizonte.
– Não tem problema – Júnior Eduardo voltou-se para o garçom: – Uma cerveja, dois copos e aquela porção de tilápia.
Migliotti baixou a cabeça e expôs a grande clareira no topo atravessada pelos tufos finos e solitários de cabelo. À sua mente assomavam os longínquos fins de tarde em que ele, sócios, amigos e funcionários emendavam mesas e passavam horas de alegre conversação, muita bebida e comida. A conta do festim sequer passava-lhe pela mente.
Júnior Eduardo buscava uma forma de tirar o amigo da sombra que o encobria, mas Migliotti parecia sob um domo invisível que barrava qualquer tentativa de conexão.
– Que manda, chefe! – começou o rapaz, num raio de intensa felicidade sobre a blindagem intransponível do outro.
Migliotti apenas ergueu os olhos pesadamente, como se carregasse toneladas nas pálpebras, e, dominado pela lassidão, encarou o ex-funcionário.
– Preciso de um carro para fazer minha campanha. Estou a pé…
Júnior Eduardo esboçou um ar de gravidade e ia perguntar sobre a caminhonete, mas achou melhor não ter que obrigar o ex-chefe a relatar mais uma derrota da infindável série que vinha acumulando desde que se aventurara pela política.
– Tenho aquele popular. Inclusive, vim com ele porque a Sara precisou do outro para uma reunião com as amigas da faculdade…
– Como ela está?
– Bem.
– E a bebê?
– Crescendo e esperta… – um sorriso quase pueril iluminou o rosto do rapaz.
– Fico feliz por você. Que bom que vai dando tudo certo em sua vida…
– Graças a você e às oportunidades que me deu… – aproveitou o jovem a deixa para injetar algum ânimo no amigo.
Migliotti encarou o rapaz com uma pálida satisfação vagando pelo semblante. Lembrou-se do garoto franzino que chegara há vinte anos como office boy. Sagaz, rapidinho foi galgando de espaço em espaço. O ingresso na faculdade de engenharia, com bolsa de estudo garantida pela empresa, a formatura; os primeiros empreendimentos do grupo que comandou, o casamento, o desligamento para criar o próprio negócio.
– Talvez eu tenha feito alguma coisa certa nesta vida… – concluiu com algum brio emoldurando o sorriso curto.
O rosto macilento de Júnior Eduardo fitou com ternura o ex-chefe. Sabia o que significaram as oportunidades que tivera no grupo. O menino pobre da região sul de Palmas agora leva a vida confortável com que sempre sonhou.
– Devia ter ouvido você… Afinal, era único que merecia a minha confiança…
– Chefe, você tem talento, é um grande empreendedor, sabe fazer as coisas acontecerem…
O corpo de Migliotti deu um leve salto na cadeira impulsionado pelo sorriso de autodeboche.
– Verdade! – insistiu o outro. – Você construiu um grupo de seis empresas, mais de quinhentos funcionários…
– Perdi em dez anos o que construí em trinta…
Júnior Eduardo conteve-se quando um grupo de crianças passou agitado nos triciclos alugados dos comerciantes da praia.
– Você tem saúde, inteligência, talento. Pode reverter tudo isso.
Noutro pulinho do corpo, Migliotti retomou o autodeboche. Repentinamente fechou o semblante e curvou-se em direção ao ex-funcionário.
– Sou um homem sem credibilidade – começou, com os olhos chamejando. – Motivo de piada em todo o Tocantins. Enganado por gigolôs da política, que queriam um pato endinheirado para depenar e encontraram… Eu! –as pontas dos dedos repicava o peito. Depois, abaixou a cabeça e soltou uma voz esvaída: – Alguém que perdeu tudo, tudo, tudo… – parou para tomar fôlego, olhou para um lado e, em seguida, fixou-se nas mãos. – Até a família…
Um silêncio cortante emudeceu a ambos. Por fim, o rapaz dissipou-o.
– Encontrei o Ricardo…
Migliotti remexeu-se ao ouvir o nome do homem que o convencera a ingressar na política há mais de dez anos.
– Sabe que assumiu a Secretaria Extraordinária de Relações Institucionais do governo do Estado, né?
O empresário voltou a cruzar os cabelos ralos com os dedos abertos e uma irritação vibrando na face.
– Disse que quer ajudar você…
– Canalha!
– Seja pragmático, chefe… Pelo menos converse com ele…
O garçom chegou com a garrafa de cerveja, copos e a porção de tilápia.
Migliotti sorveu o líquido num só gole assim que o garçom o despejou. Pegou, então, a garrafa e encheu novamente o copo.
– Diz para ele que não tem mais o que tirar de mim… – o empresário limpou a espuma branca sobre os lábios com as costas das mãos – Já não há mais nada, ao contrário de quando ele me dizia, lá atrás, que a política era estratégica para expandir meus negócios. Ao contrário de você, que insistiu tanto para eu não entrar nesse jogo… – Migliotti debruçou-se com as mãos entrelaçadas na nuca. – Por que não ouvi você! Por que não fiquei apenas no meu papel de sempre de financiador de campanhas alheias, quando todo mundo me reverenciava… Essas perguntas me martelam dia e noite…
As luzes de LED já esbranquiçavam o calçadão e o lago submergira em completo pretume. Júnior Eduardo massageava suavemente o queixo glabro com as pontas do dedo e angustiava-se por algum assunto que aliviasse o amargor que afligia o amigo.
– Como vão as movimentações para a Câmara?
– Será uma disputa difícil. Mas você sabe que tenho meus votos na região norte. Fiz algumas coisas ali. Comerciantes da Praia das Arnos e das quadras me garantiram apoio. Vejo uma chance. É no que estou me apegando para recomeçar… Voltar a ser vereador, ter um mandato para reativar os negócios…
À mente, assaltou a tentativa frustrada de chegar à Assembleia, empolgado com a primeira eleição para a Câmara de Palmas. Os milhões drenados para a campanha, as traições dos líderes, as empresas largadas nas mãos do cunhado Wilson, o choro de Beth com o dinheiro que o marido tirava da família para alimentar os lobos dos quais passou a se cercar. A reeleição absurdamente cara de vereador (afinal, ficar sem mandato seria pior, justificara). O rompimento com filho, indignado com a imprudência do pai. O fôlego reconquistado e outra tentativa irresponsavelmente milionária de se tornar deputado. “A política se tornou um jogo viciante para você!”, gritou-lhe Beth ao bater a porta e deixá-lo. Novas traições políticas, o golpe do cunhado nos negócios, a falência. A gota d’água com a derrota na última disputa para vereador.
– Fui muito burro, burro, burro…
– Calma, chefe… É uma fase. Você vai superar…
Migliotti deu novo sorriso saltitante e cáustico, e os dois homens submergiram num silêncio gélido. Júnior Eduardo ainda buscava algo que arrancasse o ex-patrão de toda aquela amargura e o velho empresário torcia para tudo não passar de um pesadelo, do qual seria despertado a qualquer instante e a vida estaria como antes: as empresas sólidas, a bela casa à beira do lago, o vultoso patrimônio, as viagens inesquecíveis, a linda esposa e os filhos cheios de orgulho do velho pai.
– Sabe o que mais dói? – disse Migliotti, por fim, lacrimoso.
Observou a alguns metros a placidez do passeio do jovem casal pelo calçadão, com garotinho num caminhar trôpego, amparado pelas mãos do pai e da mãe.
– O ódio que Sebastião Filho nutre por mim… Fiz tudo por aquele rapaz…
Júnior Eduardo reclinou o corpo em direção ao amigo para lembrá-lo numa voz suave que, pelo menos, pela insistência do jovem, a fazenda da família foi preservada.
– A forma como ele me obrigou a passar essa propriedade para o nome dele… As palavras duras, cruéis, que dirigiu a mim, seu pai…
– Dê tempo ao tempo, chefe… Ele ainda é jovem… O Tiãozinho é um empreendedor… Igual ao pai… – Júnior Eduardo esboçou um riso.
Migliotti retornou com seu autodeboche.
– Além do mais, você tem que ficar feliz porque, graças a essa atitude dele, a Beth e a Patrícia estão muito bem abrigadas na fazenda…
O nome da filha soou doce aos seus ouvidos. Patrícia ligava-lhe vez ou outra. Ainda que monossilábica, perguntava como estava, no que mentia, aventava fictícias oportunidades de excelentes negócios. “Logo estaremos todos juntos de novo, minha princesa”, garantia Migliotti à jovem, que desatava um choro dolorido, despedia e desligava.
– Me deixa na quitinete? – perguntou o ex-chefe, enxugando as discretas lágrimas com as costas da mão.
– Come, chefe, e vamos tomar mais uma…
– Preciso ir. Terei reunião ainda hoje com mototaxistas.
Júnior Eduardo tirou do bolso a chave do carro, colocou sobre a mesa e a empurrou em direção ao amigo.
– Já pode ficar com ele… É o vermelho na nossa direção – disse apontando para a avenida da orla.
– Mas e você, como vai embora?
– Vou ficar mais um pouco tomando esse ar puro da praia. A Sara me pega depois do encontro com as amigas…
Após desincrustar a barriga da mesa, Migliotti levantou-se com dificuldade e ficou parado por algum tempo fitando a chave do veículo do office-boy que graças a ele virou engenheiro e empresário.
– Obrigado – disse, por fim, sem erguer o rosto.
Então, virou-se e seguiu manquitolando em direção ao estacionamento da praia.
Júnior Eduardo chamou o garçom. Pediu mais uma cerveja e contemplou as luzes que pareciam bruxulear mais intensamente no Luzimangues, na outra margem do lago.
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.)