– Preciso falar com você! – avisei com ar de importante, num tom bem acima do usual no ambiente. Olhar fixo, braço esticado e indicador firmemente apontado para o sujeito que passou perto da nossa roda, no centro da espaçosa antessala do gabinete.
Sem sequer considerar minha quase convocação, seguiu impassível rumo ao elevador. Está acostumado, como os demais servidores, às atuações performáticas do nosso grupo, que passa manhã, tarde e noite sempre por ali, confabulando. Na verdade, nem eu dou importância àquela teatralização. O que me interessa é que minha voz ressoe e, em sua sala, o prefeito Jonatas Velasquez lembre-se de minha existência.
Preocupa-me mesmo é o vereador Verdim do Aureny, que emplacou o novo coordenador de Endemias da Secretaria da Saúde de Palmas. Não foi o primeiro avanço dele sobre a gente. Culpa do também vereador Naldão da Arno. Esse, meu aliado. Não tenho a menor dúvida da bola nas costas que Naldão tomou. Falta de aviso não foi, garanti na roda, já em voz de confessionário. Havia alertado que Verdim trabalhava para colocar uma peça na vaga, mas Naldão minimizou e assegurou que estava certa a nomeação de um cabo eleitoral do nosso time. Para a surpresa de todo mundo, o Diário Oficial do Município da noite trouxe o novo coordenador de Endemias. O cara do Verdim.
Um tal Josewilton Vasconcelos Santos. Assim mesmo, Josewilton, tudo junto. Perguntei quem o conhecia. Todos balançaram a cabeça negativamente. Ninguém fazia ideia.
Um absurdo perdermos para alguém que se aliou somente nas eleições do ano passado. Minhas veias do pescoço saltaram a ponto de explodir quando o Evandrinho do Furgão atenuou.
– É um cargo menor…
É muito amadorismo!, interrompi, irado, encarando o ingênuo. O idiota não vê que, além da derrota moral, ficamos com um espaço a menos na máquina, o que significa um soldado a menos para defender nossos interesses e um cabo eleitoral a menos para propagar nossos nomes por todas as quadras da capital. Apologia de quem o cretino acha que o tal Josewilton sei-lá-o-quê vai fazer aos quatro cantos de Palmas? São muito amadores!
Também afeta os negócios. Se quem está nomeando todo mundo é Verdim, por que um empresário vai me procurar ou a outro membro do nosso grupo e não o vereador que detém os principais cargos estratégicos da máquina para ajeitar uma coisinha aqui, outra ali? O clima de velório ficou completo quando lembrei que Verdim já havia dominado os segundo e terceiro escalões da educação e da infraestrutura e agora avançava sobre a saúde.
– Temos, então, que pensar no que fazer – sugeriu Evandrinho, na sua voz pastosa, vacilante, cara de estúpido, mas creio que agora com a devida dimensão do nosso revés.
Soltei uma obscenidade proposital e esbugalharam os olhos em minha direção. Pedi para aproximarem-se mais e ficamos os seis quase colados cabeça a cabeça.
– Ou queimamos de vez esse Verdim – comecei, olho no olho de cada um –, ou ficaremos chupando dedo. – Dei uns segundos para deglutirem as palavras e joguei-os contra a parede: – Todos aqui querem empregar um cabo eleitoral, um familiar, colocar na prefeitura o negócio de um parceiro para faturar um extra, certo?
Olhavam-me com expectativa, aguardando o desfecho do raciocínio, e ninguém respondeu nada. Isso me irritou.
– Certo, caralho? – engrossei. – Queremos ou não ampliar nossos esquemas e dominar essa porra?
Aí desembucharam de vez um “lógico” hesitante, mas era evidente que se interessavam em invadir o máximo de terreno naquele latifúndio.
– E é justo… – devolvi, agora calma e paternalmente, para conquistá-los. – Estamos há quantos anos com o Jonatas? Acompanho esse cara há vinte anos. Vin-te-a-nos! – escandi. – Fiz a primeira campanha dele para vereador em Palmas. Depois fomos para a Assembleia e para a Câmara Federal. A maioria de vocês está com a gente desde a Assembleia, certo?
Aí todos responderam um “sim” uníssono e cheio de presteza, temendo outra reprimenda. Deixei claro que o que seria dito não deveria sair daquela roda. Decisivo para a reconquistarmos os espaços perdidos.
– Verdim é o empecilho para levarmos o Jonatas para o Senado nas eleições do ano que vem – embusteei, com olhares tormentosamente confusos sobre mim.
Faz certo sentido. O cara veio do grupo do senador Antônio do Araras, nosso maior inimigo.
– Nem adversário! É inimigo! – frisei com indicador zanzando ao lado da minha orelha.
Inventou uma briga com esse seu líder e, na última hora, quando era óbvio que ganharíamos, pulou no nosso barco. Até aqui era tudo verdade. Quer dizer, como eu via os fatos das últimas eleições.
A partir daí, retomei o blefe: Verdim e Araras voltaram a conversar. Os patetas olharam-me assustados, botando fé na burla. Quando vejo esses parvos à minha volta fica claro o motivo de cedermos facilmente tanto terreno a um crente novo no grupo.
– Mas, Cisinho, ele garantiu para mim que foi traído covardemente pelo Araras e não quer saber dele… – espantou-se Zé do Uísque. – O Verdim rasgou elogios ao Jonatas na última conversa que tivemos.
Como é burro, meu Deus! Tive que explicar, ou melhor, quase desenhar, para os cretinos que se não impuséssemos nossa versão particular dos fatos, com a habilidade política do Verdim, voltaríamos para o mercado e teríamos que trabalhar de verdade. Nada de comissões por fora, emprego de renda fácil para a família. Viveríamos novamente como proletários, acordando de madrugada, batendo cartão todo dia, de manhã e de tarde, de segunda a sábado, enquanto um sujeito que chegou ontem ao grupo ficaria na boa vida. Era isso que queriam? Olharam-se perturbados e ficou claro que ninguém sequer imaginava uma desgraça dessa.
Então, fui dizendo, cada um precisa, antes de mais nada, crer que Verdim tem se reunido às escondidas com o Araras, que vai nos trair e ficar contra a candidatura de Jonatas a senador no ano que vem. E, arrematei, isso deve ser levado com o vento para toda a Palmas.
– Fui claro? Temos que pregar isso para todo mundo…
Mandei o Zé do Uísque ligar para o amigo dele, o jornalista Bruno Jordão, e plantar a informação do encontro dos dois, Verdim e Antônio do Araras.
– Peça para colocar uma nota lá no blog dele.
– Ele não vai acreditar – opôs-se Zé do Uísque.
– Mas, Zé, não estou falando que vocês são amadores. O cara quer audiência, e isso vai dar acesso demais ao blog dele. Insista nisso, faça ele acreditar nessa reunião do Verdim com o Araras. Seja convincente, caramba! Nem parece que está há trinta anos na política!
O palerma sacou o celular e caminhou para um canto do gabinete.
Nosso prefeito Jonatas pôs a cabeça fora da sala para pedir algo à secretária, dona Conceição.
– Preciso falar com você! – gritei logo, na manjada dramatização, sem perder a deixa. Cara fechada. – Tem um negócio aí circulando na cidade… Não é nada bom… Preocupante, preocupante… – meu semblante era tensão pura. – E é muito urgente… Não dá para esperar…
O time todo balançou a cabeça confirmando a gravidade com uma expressão quase angustiante.
– Muito sério? – quis certificar-se o prefeito.
– Demais… Coloca em risco nosso projeto para o ano que vem.
Jonatas entendeu que se tratava das eleições, e aí suas sobrancelhas saltaram. Já tinha sua atenção. Mandou que eu segurasse um pouco, falaria comigo logo em seguida e retomou a agenda no gabinete.
Zé do Uísque voltou satisfeito da conversa com o jornalista Bruno Jordão.
– Comprou a pauta e postará uma notinha daqui a pouco – sorria o paspalho.
Eu precisava falar com Jonatas antes dessa nota ir ao ar porque Verdim viria correndo ao gabinete para pacificar a situação com o prefeito. Apelei à sempre simpática Dona Conceição.
– A senhora não deixa ninguém entrar antes de eu falar com ele… É vital. Até para seu emprego! – avisei com um dedo em riste, e a parte que lhe tocava deixou-a atormentada.
– Pode deixar, Cisinho… Você é o próximo… – a voz até embargou.
De volta ao grupo, distribui missões. Zé do Uísque, muito amigo da imprensa, mandei visitar as redações e plantar pormenores de cores aberrantes sobre a urdidura de nossos adversários contra o projeto de Jonatas de chegar ao Senado. Evandrinho do Furgão, ligado ao povo do transporte escolar, táxi e mototaxi, deveria ir para os pontos e colocar a história para rodar. Valtim do Palmas, enviei para a moçada do esporte. Ex-vereador, patrocinava tudo quanto é campeonato de várzea. Geraldão do Conselho, muito ligado aos presidentes de bairro, conseguiu carguinhos para quase todos eles e seus familiares na máquina. Visitaria um a um. Jorge Delegado, aposentado, vivia nas rodas de potocas dos shoppings, frequentadas pelos maiores futriqueiros da capital. Faria o que bem sabe: ficar a tarde toda por lá, tomando sua água com gás e destilando nosso veneno, que rapidinho escorreria pelas artérias da política palmense.
Repassava a enredo para figuras estratégicas de grupos de zap-zap, claro que com o devido pedido de sigilo de fonte, quando Naldão chegou. Fui na lata, como é da madeira.
– Porra, com toma uma bola nas costas dessa, Naldão? Um vereador de três mandatos, caralho!
O cara parecia um semáforo fora de controle, alternando as cores.
– Estava tudo certo para pôr uma pessoa minha, mas o Jonatas me ligou ontem à noite cheio de desculpas, pedindo a vaga para o Verdim… Tive que ceder.
– É um frouxo mesmo… – fui para cima. Sem dó. – Por que não ameaçou romper, por que não falou de se juntar à bancada da oposição na câmara, o caralho?
Por fim, precisei reconhecer que Naldão não tinha condições para tanto.
– Cisinho, sabe que não poderia fazer isso… Coloquei a empresa do lixo, que me garante um bom trocado todo mês… Dois filhos recebendo bem na máquina para a mensalidade da faculdade de medicina deles em Goiás, cinquenta cabos eleitorais nomeados passam o dia inteiro nos bairros levando meu nome… Como vou peitar o prefeito?
Naldão concordou, contudo, que tínhamos que queimar o Verdim. Era a única saída. Ou estaríamos desmoralizados e nossa receita desmilinguiria rapidinho. Claro, tínhamos que descobrir o que amarrava os dois, Verdim e Jonatas.
– Só pode ser negócio…
Naldão é outro sonso. Não suporto quando querem ensinar mágica para mágico.
– Isso eu sei, porra… O que precisamos saber é que negócios são esses.
O vereador também não tinha dúvidas de que um tema sensível para Jonatas eram eleições do ano seguinte para o Senado. Caso sonhasse em ser traído, perderia as estribeiras e o infiel não teria seu perdão por nenhum negócio deste mundo. Tínhamos que emprenhá-lo pelo ouvido.
– Meu povo está na estrada… A coisa vai ganhar as ruas e a imprensa – avisei.
– Teremos que segurar o rojão porque Verdim vem rasgando pra cima de nós.
– E lá tenho medo! Rapaz, se meu interesse está em jogo, vou pra cima. É matar ou morrer.
Enfim, a demorada reunião terminou e o procurador-geral do município deixou o gabinete.
– Preciso falar com você! – dirigi-me ao doutor na ordinária atuação performática, olhar fixo, braço esticado e indicador firmemente apontado.
O procurador só ajeitou a gravata, esboçou um sorriso protocolar e avançou para o elevador. Claro, não dei a mínima. Queria apenas que todo o povo à espera de atendimento na antessala visse-me com o prefeito.
Dona Conceição anunciou-nos e Naldão e eu fomos festivamente recebidos por Jonatas à porta, sob o olhar atento da plateia embevecida.
A essa altura, a notícia já deveria estar no blog do Bruno Jordão.
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.)