“A verdade nunca fere uma causa que seja justa”
Mahathma Gandhi
Preliminarmente, se faz necessário consignar que, este subscritor, nutre enorme apreço, respeito e admiração pela Polícia Militar, tendo consciência cívica a respeito da importância do seu trabalho de policiamento ostensivo, objetivando a preservação da ordem pública, conforme prescreve o art. 144, § 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, fomentando a manutenção da paz e ordem social.
Impende destacar que, a despeito do respeito que este subscritor nutre pela Polícia Militar, esta circunstância, não o exime de exercitar o direito constitucional à livre manifestação de pensamento, decorrente da imprescindível liberdade de expressão, estabelecida pelo art. 5º, IV, da Constituição Federal, assegurando-nos a legitimidade para fazer a abordagem de caráter técnico-jurídico, despida de qualquer conotação e sentimento corporativista, pois sequer integra carreira policial, se encontrando equidistante dos atores da celeuma, a respeito de tema enormemente controvertido, que muitos se recusam a exteriorizar sua singela opinião, com receio de ser incompreendido e sofrer represálias pelos integrantes da Polícia Militar, diante do estigma que repousa sobre essa carreira, a respeito da dificuldade de se conviver com às opiniões contrárias às vossas pretensões, remanescente do período de exceção, o que não se aplica na atualidade, pelo aperfeiçoamento e qualificação dos novos integrantes militares.
Ocorre que, a essência das democracias consolidadas, se traduz com a pluralidade de opiniões e o respeito às divergências de ordem ideológica, jurídica, religiosa e política, etc, pois o dissenso, muitas vezes, serve-nos como ponto de reflexão e mudança de paradigmas que, acaso prevalecesse a opinião unânime, nem sempre a sociedade conseguiria obter o rompimento de posturas arcaicas e antiquadas, atingindo os propósitos idealizados, além da evolução e transformação da realidade social perseguida.
Após essa breve reflexão preliminar, retornamos ao tema do nosso artigo, discorrendo a respeito da inconstitucionalidade formal e material da condução de investigações de crimes dolosos contra a vida, supostamente perpetrados por policiais militares no exercício da atividade, em detrimento de civis.
Em data de 19 de maio de 2018 (último sábado), um dos principais veículos de comunicação impresso do Estado do Tocantins, veiculou matéria jornalística, repercutindo fatos de enorme repercussão jurídica, noticiando a suposta condução de investigação por Oficiais da Polícia Militar do Estado do Tocantins, decorrente do eventual cometimento de crimes dolosos contra a vida, perpetrados, em tese, por militares, no exercício da atividade policial, em detrimento de 04 (quatro) cidadãos civis, que vieram à óbito, em decorrência de possível confronto com os militares no dia 15/05/2018, usurpando, com o devido respeito, às prerrogativas outorgadas à Polícia Civil Judiciária, pelo § 4º, do art. 144, da Constituição Federal.
[bs-quote quote=”Se compete à Justiça Comum o processamento dos crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar porque não constituem infrações militares, por certo não cabe à Polícia Judiciária Militar sua investigação, sendo reservada a essa tão somente a investigação das infrações militares” style=”default” align=”right” author_name=”JORGAM OLIVEIRA SOARES” author_job=”É graduado e pós-graduado em Direito” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/04/Jorgam60.jpg”][/bs-quote]
Às investigações conduzidas por Oficiais da Polícia Militar, nos moldes acima destacado, teria como motivação jurídica a legitimar lhes na condução de investigações decorrente do eventual cometimento de crimes dolosos contra a vida, perpetrados, em tese, por militares, no exercício da atividade policial, em detrimento de cidadãos civis, a Instrução Normativa nº 001/2018, aprovada pelo Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Tocantins, que padece, em tese, de inconstitucionalidade formal e material.
Isso porque, o Supremo Tribunal Federal ((HC 111406, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-160 DIVULG 15-08-2013 PUBLIC 16-08-2013), instado a se manifestar em casos como o que ora se debate, há muitos anos vem se pronunciando que a Justiça Comum é competente para julgar crime de militar (homicídio) contra civil, por força da Lei Federal nº 9.299/96, trazendo, consigo, implícito, que a atribuição e legitimidade originária para conduzir investigações dessa natureza, é da Polícia Judiciária Estadual (Polícia Civil), conforme preleciona o § 4º, do art. 144, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Ocorre que, em data de 13 de outubro de 2017, o Presidente da República Federativa do Brasil, sancionou a Lei Federal nº 13.491, alterando o art. 9º, do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, cognominado de CPM – Código Penal Militar, instaurando-se a controvérsia que ora debatemos. A despeito disso, vale registrar que, a Lei Federal nº 13.491, alterando o art. 9º, do CPM – Código Penal Militar, passou a vigorar com a seguinte redação: II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: § 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.
Todavia, o seu § 2º, de forma flagrantemente inconstitucional, por ofender à competência constitucional do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, estabelecida pelo art. 5°, XXXVIII, d, da Constituição da República Federativa do Brasil, passou a prescrever que “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: a)Lei n o 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica; b)Lei Complementar n o 97, de 9 de junho de 1999; c)Decreto-Lei n o 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e d)Lei n o 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. ” (NR).
Após a Lei Federal nº 13.491, alterar o art. 9º, do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, cognominado de CPM – Código Penal Militar, ampliando a competência da Justiça Militar da União, para albergar “os crimes dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil”, instaurou-se a controvérsia em debate, passando às Polícias Militares a conduzir investigação.
Isso porque, o § 2º, da Lei Federal nº 13.491, ao permitir essa ampliação da atuação da Justiça Militar no âmbito da União, além de ofender à competência constitucional do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, estabelecida pelo art. 5°, XXXVIII, d, da Constituição da República Federativa do Brasil, revelou sua inconvencionalidade, por também violar a Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos, do qual o Estado Brasileiro é signatário.
Não obstante isso, o art. 124 da Constituição da República Federativa do Brasil, prescreve que à Justiça Militar compete julgar os crimes militares definidos em Lei. Todavia, o Constitucionalista José Afonso da Silva (SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 2 ed. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 588.), sustenta a tese de que o alcance da lei para a definição dos crimes militares não é irrestrito, sob pena de desbordar as balizas constitucionais a respeito da matéria.
Sob essa ótica, embora a Constituição da República Federativa do Brasil, delegue à norma infraconstitucional os critérios de fixação da competência da justiça militar, não é qualquer crime que pode a ela ser submetido, senão o crime militar propriamente falando, que por sua vez, não pode ser qualificado, genericamente, como todos os crimes praticados por militar.
Essa linha interpretativa, por sinal, ganha eco nas palavras do notável doutrinador jurídico Eugênio Pacelli (PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21 ed. (revista, atualizada e ampliada). São Paulo: Atlas, 2017, p. 264), ao perfilhar do entendimento de que para caracterização do crime militar não é suficiente que o delito seja praticado por militar, mas é imprescindível que a ação seja dirigida contra bens jurídicos das Forças Armadas, ou praticada por militar, mas em razão da atividade militar propriamente dita, o que não se aplica aos casos de crimes dolosos contra a vida (homicídio) praticado por militar em detrimento de civil, como vem autorizando a Instrução Normativa nº 001/2018, aprovada pelo Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Tocantins, que padece, em tese, de inconstitucionalidade formal e material.
Desta forma, com o advento da Lei Federal nº 13.491, que alterou o art. 9º, do CPM – Código Penal Militar, às Polícias Militares no âmbito das respectivas Unidades Federativas, vem efetuando um verdadeiro malabarismo interpretativo para sustentar a aplicabilidade da Lei Federal nº 13.491, que, a despeito de ter aplicabilidade questionável, se restringe apenas aos crimes dolosos contra a vida, cometidos por Militares das Forças Armadas.
Veja-se que, mesmo a Lei Federal nº 13.491, que alterou o art. 9º, do CPM – Código Penal Militar, ampliando a competência da Justiça Militar da União, tem a sua constitucionalidade questionada, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, conforme se infere das ADI’s – Ações Direta de Inconstitucionalidade nº 5804 e 5901, por ofender à competência constitucional do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, estabelecida pelo art. 5°, XXXVIII, d, da Constituição da República Federativa do Brasil, além de violar a Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos, do qual o Estado Brasileiro é signatário, sendo inconvencional, quiçá a Instrução Normativa nº 001/2018, aprovada pelo Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Tocantins, que padece, em tese, de inconstitucionalidade formal e material.
A inconstitucionalidade formal da Instrução Normativa nº 001/2018 – PMTO, decorre da violação à competência privativa da União em legislar sobre processo penal e estabelecer normas gerais sobre procedimento em matéria processual, conforme se infere do art. 22, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, eis que, a Lei Federal nº 13.491, que alterou o art. 9º, do CPM – Código Penal Militar, mesmo de constitucionalidade duvidosa, não tem aplicabilidade no âmbito da Justiça Militar dos Estados, sendo às hipóteses ali mencionadas, de caráter taxativo, além de ofender o princípio da reserva legal e da separação dos poderes, pois a matéria somente poderia ser disciplinada por Lei Formal.
Desse modo, ainda que não se entenda que a resolução ora objurgada não disciplina sobre processo, mas sim sobre procedimento, é certo que ao disciplinar sobre inquérito policial, penetrou a competência privativa da União prevista no artigo 24, XI, e § 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, para editar normas gerais sobre procedimentos em matéria processual.
Não se pode ignorar que, a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, modificou o § 4º do art. 125 da Constituição Federal, para determinar que os militares dos Estados, nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civis, serão julgados pelo tribunal do júri, evidenciando a inconstitucionalidade material da Instrução Normativa nº 001/2018, violando, também, o art. 5°, XXXVIII, d, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Partindo-se desse pressuposto, torna-se inequívoco que, havendo disposição constitucional específica quanto aos militares estaduais, a saber, o § 4º do art. 125 da Constituição Federal, a Lei Federal nº 13.491/2017, de constitucionalidade duvidosa, privilegia somente os militares das Forças Armadas que, nas ações de garantia da lei e da ordem, venham a cometer crimes dolosos contra a vida, sendo que, nesses casos, os militares federais serão julgados por seus pares, e não pelo tribunal do júri, em contrariedade ao princípio da isonomia e afronta ao princípio do tribunal do júri, padecendo de inconstitucionalidade material, além de ofensa à Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos, do qual o Estado Brasileiro é signatário, demandando controle de convencionalidade.
Outra abordagem que não pode passar despercebida, se refere ao fato de que o Supremo Tribunal Federal, à ocasião do julgamento do Habeas Corpus – HC 72022, (Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/1995, DJ 28-04-1995 PP-11136 EMENT VOL-01784-02 PP-00451), firmou entendimento de que a competência para o julgamento de crimes militares merece interpretação estrita, sendo que os crimes dolosos contra a vida praticados por policial militar contra civis ou militares devem ser julgados pela justiça comum, trazendo, consigo, interpretação implícita de que a investigação desses delitos ficam a cargo da Polícia Civil.
Dessa forma, torna-se inequívoco que se compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar, a ela compete também, e privativamente, pronunciar-se, em sede de promoção de arquivamento do inquérito policial, recebimento de denúncia, decisão de pronúncia ou plenária, assim como o controle do inquérito.
Nessa linha interpretativa, se compete à Justiça Comum o processamento dos crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar porque não constituem infrações militares, por certo não cabe à Polícia Judiciária Militar sua investigação, sendo reservada a essa tão somente a investigação das infrações militares, conforme vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar em data de 22/06/2016, o Conflito de Competência nº 144919 – SP, Rel. Min. Felix Fischer.
A tese que ora sustentamos, goza de enorme plausibilidade jurídica, tendo, inclusive, reconhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já teve a oportunidade de se pronunciar várias vezes acerca do alargamento inapropriado e indevido da competência da justiça militar nos seguintes precedentes: Caso 19 Comerciantes (2004, parágrafos 164 a 177), Caso Almonacid Arellanos (2006, parágrafos 130 a 133), Caso Cantoral Beanvides (2000, parágrafos 111 a 115), Caso Durante Y Ugarte (2000, parágrafos 115 a 118) e Caso Las Palmeiras (2001, parágrafo 51 a 54). (Cf. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/. Acesso em 20 maio. 2018).
Por fim, sobreleva anotar, que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em data de 13 de setembro de 2017, ao apreciar Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2166281-19.2017.8.26.0000, proposta pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, suspendeu cautelarmente a eficácia normativa da Resolução nº 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, que “dispõe sobre apreensão de instrumentos ou objetos em Inquérito Policiais Militares” no cenário de crimes praticados pelos próprios agentes da corporação militar, semelhante à Instrução Normativa nº 001/2018, que a Polícia Militar do Tocantins vem utilizando para conduzir investigações dessa natureza.
Para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos termos dos arts. 5º, XXXVIII, “125, § 4º; 144, § 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil, e 6º do Código de Processo Penal, c/c art. 2º, §§ 1º e 2º, ambos da Lei Federal nº 12.830/13, compete à Polícia Civil, dirigidas por delegados de polícia de carreira, a investigação dos crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares contra civis, em época de paz, dado que são de competência do Tribunal do Júri.
Ao fazer às nossas considerações finais, recitaremos trecho da música Disparada, de autoria de Geraldo Vandré e Theo de Barros, interpretada de forma impecável por Jair Rodrigues, que se transformou no hino das multidões, tão entoada durante o regime de exceção ao qual o Brasil fora submetido, que assim se manifestou: “Se você não concordar, não posso me desculpar, não canto pra enganar, vou pegar minha viola, vou deixar você de lado, vou cantar em outro lugar.
JORGAM OLIVEIRA SOARES
É graduado e pós-graduado em Direito e Processo Administrativo pela Universidade Federal do Tocantins (UFT)
jorgamsoares@yahoo.com.br