No dia 5 de janeiro de 2023 foi divulgado pela imprensa o veto do governador Wanderlei Barbosa (Republicanos) à mudança no Código Tributário do Tocantins que pretendia estender a isenção do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) para pessoas surdas ou com deficiência auditiva. (DOE – 04/01/2023).
A proposta foi de autoria do diligente deputado Ricardo Ayres (Republicanos). O benefício já é garantido (Inciso VI, artigo 71º) aos portadores de deficiência física, visual, mental severa ou profunda e autistas, limitado a um veículo de até R$ 70 mil.
Em mensagem n. 23, de 2 de janeiro de 2023, o Senhor Governador do Estado comunicou ao Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins que
“é importante ressalvar que o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA e o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS possuem os mesmos critérios e requisitos para a concessão de isenção na aquisição de veículos automotores por pessoas com algum tipo de deficiência.
O Convênio ICMS no 38/2012, com alteração do Convênio ICMS no 161/2021, concede isenção nas saídas de veículos destinados a pessoas com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, síndrome de Down ou autistas, não estendendo o benefício para os portadores de deficiência auditiva ou surdos.
Dessa forma, a modificação do texto legal possibilitando a concessão do benefício fiscal para pessoas surdas ou com deficiência auditiva pode gerar divergências junto ao órgão fazendário, exatamente por inexistir hipótese semelhante para a concessão do benefício quanto ao ICMS.” (DOE, 04/01/2023, p. 6).
Termina a mensagem informando que “nesse contexto, o mencionado Autógrafo de Lei no 187, de 14 de dezembro de 2022, não merece prosperar por estar em desacordo com o interesse público, bem como não atender os ditames previstos no art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.”(DOE, 04/01/2023, p. 6).
O veto não merece prosperar! Explico:
Ao requerer a alteração do Código Tributário do Tocantins, o então deputado estadual Ricardo Ayres (PSB), de forma brilhante, ponderou que “a atual legislação isenta de IPVA pessoa com deficiência, física, visual, mental severa ou profunda e autista, deixando de fora os surdos e deficientes auditivos, pessoas essas que também merece o benefício”. (https://www.al.to.leg.br/noticia/9285/projeto-pretende-isentar-de-ipva-veiculos-adquiridos-por-deficientes-auditivos).
Interessante observar que alguns estados da federação brasileira já estenderam o benefício da isenção de impostos também para os deficientes auditivos, apelando para o princípio da isonomia de direitos, considerando que todos fazem parte do grupo de pessoas com deficiência.
O Convênio ICMS n. 161, de 01/10/2021, ratificado pelo Ato Declaratório CONFAZ Nº 26 DE 21/10/2021, alterou o Convênio ICMS nº 38/2012, que concede isenção do ICMS nas saídas de veículos destinados a pessoas com deficiência física, visual, mental ou autista.
Esta legislação fere de morte o princípio da isonomia. Isto porque o benefício fiscal foi construído como forma de realizar políticas públicas para a inclusão social das pessoas beneficiadas, in casu, os portadores de deficiências auditiva e os surdos.
Quem são os deficientes auditivos? São consideradas pessoas com deficiências auditivas apresentando perda unilateral ou bilateral, parcial ou total de 41 decibéis, aferida por audiograma nas frequências de mil Hz, 2 mil Hz e 3 mil Hz.
Conforme publicado no site https://www.al.sp.gov.br/, no Brasil, cerca de 5% da população é surda Brasile, parte dela usa a Libras como auxílio para comunicação. De acordo com dados do IBGE, esse número representa 10 milhões de pessoas, sendo que 2,7 milhões não ouvem nada. Quando o assunto é educação, a população surda se enquadra em porcentagens muito baixas de formação. Segundo estudo feito pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda em 2019, cerca de 7% dos surdos brasileiros têm ensino superior completo, 15% frequentaram a escola até o ensino médio, 46% até o fundamental, enquanto 32% não têm um grau de instrução. (https://www.al.sp.gov.br/noticia/?23/09/2021/dia-internacional-da-linguagem-de-sinais-procura-promover-a-inclusao-de-pessoas-surdas-#:~:text=No%20pa%C3%ADs%2C%20cerca%20de%205,porcentagens%20muito%20baixas%20de%20forma%C3%A7%C3%A3o.)
O espírito da norma é facilitar a locomoção dessas pessoas e melhorar suas condições para exercerem suas atividades, buscarem atendimento para suas necessidades e alcançarem autonomia e independência. Ademais, tais políticas têm natureza constitucional e estão conectadas a direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, em especial com a dignidade da pessoa humana.
Prima facie, legislação semelhante, que trata do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), proposta pelo Procurador-Geral da República junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), pois contém uma omissão que implica violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e da isonomia, previstos no artigo 1º, inciso III, e no artigo 5º, caput, da Constituição Federal. Para o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, “a isenção do IPI para automóveis adquiridos por deficientes condiz com o princípio da dignidade da pessoa humana, mas a ausência desse direito para os deficientes auditivos cria uma discriminação injustificada. O inciso IV do artigo 1º da Lei 8.989/1995 prevê a isenção para deficientes físicos, visuais, mentais e autistas.” (ADO 30).
A Lei n. 8.989/1995, em seu artigo 1º, inciso IV, não inclui expressamente as pessoas com deficiência auditiva. Beneficia as pessoas com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas. O STF reconheceu a omissão da lei em relação aos deficientes auditivos.
O Ministro Dias Toffoli, Relator da ADO 30, proferiu o seguinte voto:
Visto isso, destaco que, não obstante o Poder Público tenha, por meio do benefício fiscal em análise, implementado as aludidas políticas públicas, ele o fez de maneira incompleta e discriminatória. Afinal, as pessoas com deficiência auditiva não foram incluídas no rol dos beneficiados de tais políticas. E, ao assim proceder, ofendeu não só a isonomia, mas também a dignidade e outros direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais das pessoas com deficiência auditiva (grifos no original).
Consta na Ementa do Acórdão que
4. O poder público, ao deixar de incluir as pessoas com deficiência auditiva no rol daquele dispositivo, promoveu políticas públicas de modo incompleto, ofendendo, além da não discriminação, a dignidade da pessoa humana e outros direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, como os direitos à mobilidade pessoal com a máxima independência possível, à acessibilidade e à inclusão social. Tal omissão constitui violação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada conforme o art. 5, § 3º, da CF/88. Necessidade do controle jurisdicional.
5. Aplicar o benefício fiscal em prol dos deficientes auditivos resultaria, entre outras benéficas consequências, na facilitação de sua mobilidade pessoal – com a isenção do tributo, esse seria o efeito esperado, pois eles poderiam adquirir automóveis mais baratos. O automóvel pode, inclusive, facilitar que crianças com deficiência auditiva tenham acesso a programas de treinamento destinados ao desenvolvimento da coordenação, do ritmo, do equilíbrio etc. (ADO 30 – Relator Ministro Dias Toffoli). (grifei).
Se não pode haver isenção do IPVA no Estado do Tocantins, no Estado de São Paulo a lei autoriza a referida isenção. Conforme publicado no site https://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/,
Através da Lei nº 17.473/2021, o Estado de São Paulo viabilizou mais uma conquista para as pessoas com deficiência: agora está assegurado o direito à isenção do IPVA para um veículo de propriedade de pessoas, ou respectivo representante legal, com transtorno do espectro do autismo em grau moderado, grave ou gravíssimo, ou com deficiência física, sensorial, intelectual ou mental, moderada, grave ou gravíssima.
A redação conferida pela legislação em vigor avança em direitos para a inclusão da população com deficiência, na medida em que amplia o rol de deficiências já especificadas em legislações anteriores.
A nova legislação oferece soluções que asseguram a isenção de IPVA para um veículo de pessoas com os diversos graus de autismo e, ao contemplar a deficiência sensorial e deficiência intelectual alcança também casos de surdez e síndrome de Down, dentre outros. Também amplia a isenção de IPVA-PCD para veículos de pessoas com deficiência não condutoras, ou de propriedade do seu representante legal. Além disso, permite que o veículo permaneça no nome do responsável legal e não somente no da pessoa com deficiência. (grifei).
Chamada também de isenção social, no Estado do Mato Grosso a Secretaria da Fazenda regulamentou benefícios fiscais a pessoas com deficiência auditiva.
O Decreto nº 1.398, além de tratar sobre a isenção do IPVA para portador de visão monocular, também isenta do pagamento deste tributo as pessoas deficientes auditivas que apresentarem perda bilateral, parcial ou total, de 41 decibéis (dB) ou mais.
Além dos portadores de deficiência auditiva, a isenção do IPVA é garantida por lei às pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista. Também estão isentos veículos como máquina e trator agrícola e de terraplanagem; aéreo de exclusivo uso agrícola; ônibus de transporte coletivo urbano; de aluguel (táxi); de combate a incêndio; locomotiva e vagão ou vagonete de uso ferroviário e embarcação de pescador profissional. (http://www5.sefaz.mt.gov.br/-/9450719-sefaz-regulamenta-beneficios-fiscais-a-pessoas-com-deficiencia).
Há de se observar que o Decreto nº 3.298/99 estabeleceu a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e definiu as categorias de deficiência física, auditiva, visual e mental. Contrariando tal Decreto, o veto do Chefe do Poder Executivo fere de morte o benefício fiscal foi estendido para todas as pessoas com deficiência, ao considerar que as pessoas com deficiência auditiva não merecem a isenção, apesar de estarem enquadradas na mesma categoria.
Por será que no Estado do Tocantins deficientes auditivos não são considerados deficientes?
Entendemos que a isenção do IPVA para os surdos e portadores de deficiência auditiva não traz nenhum impacto negativo ou custo extra ao Executivo Estadual, pois se trata de renúncia fiscal, cujas exigências a serem atendidas estão previstas no artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF.).
Excluir os deficientes auditivos da isenção do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores é uma afronta ao princípio da isonomia, pois, apesar do texto constitucional não assegurar aos deficientes auditivos qualquer benefício fiscal, a isenção, ou a dispensa legal do pagamento do tributo que incidiu e que seria devido, não é um ato discricionário do ente tributante, fundado em juízo de conveniência e oportunidade, eis que o fundamento da República é o princípio da dignidade da pessoa humana.
Não há que se falar que as pessoas com deficiência auditiva não têm direito à isenção do IPVA porque podem obter Carteira Nacional de Habilitação – CNH e dirigir o próprio veículo. Ora, muitos portadores de deficiência também podem realizar essas mesmas ações, necessitando, conforme o caso, de utilizar prótese física ou de carro adaptado. Ademais, ter ou não CNH não pode ser motivo para beneficiar ou não da isenção social.
O direito à isenção para os portadores de deficiência auditiva está previsto até na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a seu Protocolo Facultativo, que, aliás, equivalem a uma emenda constitucional, por terem sido adotados pelo Brasil nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal.
Por fim, cabe aos nobres deputados derrubar o veto do Governador, pois a isenção do IPVA para portadores de deficiência auditiva é uma política social, que tem inequívoca natureza constitucional, além de estarem fortemente conectadas com direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, em especial com a dignidade da pessoa humana.
LUIZ FRANCISCO DE OLIVEIRA
É promotor de Justiça do MPTO. Doutorando em Direito Público pela Unisinos. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela UFT/Esmat. Professor de Direito da Unitins. Portador de Deficiência auditiva bilateral.
luizfrancisco.oliveira2011@uol.com.br