No Brasil, a crise no sistema penitenciário vem sendo anunciada e se arrasta nas superlotações, em constantes rebeliões, lutas internas e externas entre facções, reflexos da desordem e desinteresse das gestões no sentido da padronização estrutural e do tratamento do encarcerado priorizando o trabalho. O fato é que a situação emergencial não admite perda de tempo e não condiz com a apatia.
Para ilustrar uma parte da sujeira que o país lança para debaixo do tapete, segundo estatísticas, há 607.731 presos em todo o Brasil, sendo que 40% desse total são presos provisórios, problemática que envolve não somente o Judiciário, mas os demais poderes de Estado.
Em meio à crise e não havendo soluções categóricas, trouxe-se à tona a necessidade de medidas como a implantação da audiência de custódia no Brasil. Embora não tenha sido o fundamento propulsor para sua adoção, vislumbrou-se uma redução significativa dos presos provisórios encarcerados.
[bs-quote quote=”Ao se reduzir o número de presos provisórios, a economia total para o país seria de aproximadamente 13,9 bilhões de reais. Valendo ressaltar que, atualmente, o gasto anual por preso no Brasil é de R$ 36.000,00″ style=”default” align=”right” author_name=”MILLENA COELHO JORGE ALBERNAZ” author_job=”É delegada de Polícia Civil do Tocantins” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/03/MillenaCoelhoJorgeAlbernaz60.jpg”][/bs-quote]
Contextualizando as discussões sobre a audiência de custódia no país, em 2011, foi apresentado no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 554/2011, com o objetivo, naquele momento, de adequar o ordenamento jurídico interno aos preceitos estabelecidos pela ordem internacional com providências imediatas nos casos de violação dos direitos humanos e sobre a alteração do artigo 306, §1.º, do Código de Processo Penal, determinando o prazo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial, após a prisão em flagrante. Atualmente, o projeto, embora aprovado pelo Plenário do Senado Federal, encontra-se na Câmara dos Deputados desde dezembro de 2016.
Diante da lentidão do processo legislativo, da evidente omissão da legislação interna sobre o tema e considerando o controle de convencionalidade, assim como a realidade das rebeliões nos presídios brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 213/2015, por meio da qual o preso em flagrante ou em cumprimento de mandado de prisão, deverá ser levado à presença de um juiz no prazo de 24 horas.
A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL/BR, em fevereiro do mesmo ano, propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5240, alegando afronta ao princípio da reserva legal, invasão da competência do Poder Legislativo e ofensa ao princípio da separação de poderes, já vislumbrando, dentre outros aspectos, a implementação da referida audiência sem a devida estrutura policial. O Supremo Tribunal Federal julgou pela improcedência da mesma e, examinando em maio do mesmo ano a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. º 347/DF, uma das bases da Resolução do CNJ, expediu determinações aos juízes e Tribunais para a adoção das audiências de custódia em todo o país. Nesse ato, cumpre aos magistrados a análise da necessidade, adequação e utilidade da prisão.
Ao conceituar audiência de custódia ou apresentação do preso, o próprio Conselho Nacional de Justiça, como já mencionado, salienta tratar-se de uma ação mediante a qual o preso em flagrante é levado à presença do juiz no prazo de 24 horas. O autuado estará acompanhado de seu advogado ou de um defensor público; será ouvido, previamente, por um juiz, que decidirá sobre o relaxamento da prisão ou sobre a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. O juiz também avaliará se a prisão preventiva pode ser substituída por liberdade provisória até o julgamento definitivo do processo e adotará, se for o caso, medidas cautelares, como monitoramento eletrônico e apresentação periódica em juízo. A realização de exames médicos para apurar se houveram maus-tratos ou abuso policial durante a execução do ato de prisão também poderá ser determinada.
Para alguns autores, a finalidade da audiência de custódia no Brasil seria, de forma mediata, adequar o processo penal brasileiro ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e, de forma imediata, assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa submetida à prisão. Para os defensores das audiências de custódia, há um reflexo dessa ação, em evitar prisões desnecessárias, atenuando-se superlotação carcerária e os gastos decorrentes da manutenção dos presos provisórios.
Por outro lado, não se pode esquecer que a solução da crise penitenciária não está na liberação desmedida dos infratores, desmerecedora do sofrimento das vítimas e desmotivadora do trabalho policial que exige perspicácia, riscos e gastos estruturais. Tomamos como exemplo uma tentativa de homicídio recente no país contra um presidenciável, em que, embora não tenha havido a soltura do infrator, o que se observou na audiência de custódia foi uma ladainha do autor sobre as amarguras da prisão, tratando um crime grave de sua autoria como um mero “incidente” e denunciando agressões sofridas. Nesse caso, a vitimização e a mera fala do autor no sentido de ter sofrido violência policial gerará instauração de procedimentos nas corregedorias policiais respectivas, causando, entre outros aspectos, transtornos aos policiais que exerceram suas funções, inclusive contra possível linchamento do preso.
Sendo assim, com respaldo no equilíbrio, requer-se uma análise atenta do Judiciário quanto a diferenciar falácias dos autores de crimes – cujas agressões mencionadas podem se tratar de ações policiais no limite da contenção do infrator – de reais abusos efetivados. Da mesma forma e mesmo que se baseie no princípio da liberdade, tendo a prisão como ultima ratio e na preservação das conquistas seculares de respeito aos direitos humanos e fundamentais, tem-se, com base nisso, que superar deficiências estruturais e de pessoal enfrentadas pela atividade policial diariamente, em que o policial anseia por valorização social e dos gestores, e lida, ainda, com a astúcia de muitos criminosos com denúncias infundadas e com o descaso.
Contudo, para se dimensionar os resultados da implementação da audiência de custódia no país, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, até abril de 2017 foram realizadas em todo o país 229.634 audiências de custódia, sendo que, desse total, resultaram em liberdade 103.669 casos, correspondendo a 45,15%.
Do total de audiências, 125.965 (cerca de 54,85%) resultaram em prisão preventiva, sendo que em 11.051 dos casos (4,81%) houve alegação de violência no ato da prisão e em 10,77% (cerca de 24.721 dos casos) houve encaminhamento social/assistencial.
Desta feita, dentro da visão contemporânea de intervenção penal mínima, mudanças na visão social e na atuação dos membros que compõem os Poderes de Estado, notadamente do Poder Judiciário na análise minuciosa das condutas e na verificação da necessidade, adequação e utilidade do encarceramento, representam um passo significativo.
O fato é que, com índices de violência elevados, ao Brasil é imposta a contramão da visão contemporânea, já que, entre os anos de 1995 e 2010, registrou-se a segunda maior variação na taxa de aprisionamento, com um crescimento de 136%, índice que levou em consideração as taxas de cinquenta países com maior população carcerária, estando na quarta colocação, reconhecendo-se, portanto, que a audiência de custódia, em que pese não representar a solução para a crise no sistema penitenciário brasileiro, ofereceu maior agilidade na definição da prisão ou soltura do infrator. Mesmo porque, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, ao se reduzir o número de presos provisórios, a economia total para o país seria de aproximadamente 13,9 bilhões de reais. Valendo ressaltar que, atualmente, o gasto anual por preso no Brasil é de R$ 36.000,00.
De outra forma, aos Poderes de Estado cabe a correção das distorções estruturais e territoriais para então adotar a audiência de custódia em todo o país, cuja implementação deixou de ser um problema jurídico para entrar na esfera dos poderes públicos. Aliado a isso, amenizar a crise do sistema penitenciário requer planejamentos pormenorizados, estruturação que passa também por uma legislação que proteja o cidadão, sendo menos permissiva com os infratores, coibindo com rigor e efetividade, notadamente, os crimes graves. De outra parte, exige-se produção e trabalho do preso, como consequência dos seus atos, pois quem está pagando a conta, atualmente, é a população honesta.
Afinal, a justiça pode até caminhar sozinha, mas a injustiça precisa de argumentos. Evolução é possível, mas com reflexão para que se tenha uma igualdade proporcional e com justiça. Sobretudo, porque na crise do sistema penitenciário, seja em qualquer época, o centro do interesse social deve ser voltado para a vítima que sofre as consequências do ato criminoso e disso não se pode esquecer.
MILLENA COELHO JORGE ALBERNAZ
É delegada de Polícia Civil do Tocantins, graduada em Direito pela PUC-Pontifícia Universidade Católica de Goiás, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Unitins e mestranda pela Universidade Autônoma de Lisboa.
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