Há muitos anos atrás, em algum lugar da Europa, um rei servia de exemplo para seu exército liderando-o em várias guerras. Em um raro dia de paz, o rei estava no ferreiro da cidade trocando as ferraduras de seu cavalo. Contudo, de forma surpreendente, o exército inimigo começou a se aproximar e o rei pediu pressa ao ferreiro, pois deveria estar à frente de seus comandados em mais uma batalha a ser travada. O ferreiro tentava acelerar ao máximo seu trabalho, mas ainda faltava uma ferradura para ser fixada. O rei não tinha mais tempo e decidiu partir para a batalha com ferraduras em apenas três patas do seu cavalo. Com os inimigos já no campo de visão, o rei reuniu rapidamente seus homens e começou a cavalgar em direção a mais um combate. Ao exigir maior velocidade do cavalo, em razão da falta de uma ferradura, o cavalo caiu. O rei ainda tentou resistir, mas, em posição de inferioridade, foi facilmente dominado pelos inimigos, e sua vida não foi poupada. O exército, sem a figura do seu líder, foi derrotado e subjulgado pelos seus rivais.
[bs-quote quote=”O calor do momento tem se mostrado fundamental para o esclarecimento (e muitas vezes até a prisão em flagrante) nos crimes de homicídio. Uma equipe treinada, experiente, vivida, com tirocínio sabe as medidas a serem tomadas. Sabe diferenciar o que tem e o que não tem importância no corpo de delito. Sabe, muitas vezes, identificar, de pronto, se uma testemunha está mentindo ou falando a verdade” style=”default” align=”right” author_name=”BERNARDO JOSÉ ROCHA PINTO” author_job=”É delegado de Polícia em Pedro Afonso” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/03/BERNARDO-JOSÉ-ROCHA-PINTO60.jpg”][/bs-quote]
Por causa de uma ferradura se perdeu um cavalo. Por causa de um cavalo se perdeu uma batalha. Por causa de uma batalha se perdeu uma guerra. Por causa de uma guerra se perdeu um reino. Um pequeno detalhe decidiu a sina de um rei!
Essa breve história nos leva a refletir a respeito da importância dos detalhes. Pequenas decisões que podem fazer uma grande diferença, podem selar um destino.
O Brasil adotou um sistema de investigação preliminar conduzido pelas polícias civil e federal tendo no inquérito policial (presidido pelo delegado de polícia) a principal forma de busca da verdade para além de dúvida razoável.
É exatamente por meio da investigação que o Estado apura as infrações penais, permitindo, de um lado, a responsabilização dos autores, e de outro, evitando acusações infundadas.
Nesse passo, projeta-se o delegado de polícia como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais, não só das vítimas, mas também dos próprios investigados, de forma que a autoridade policial possui íntimo contato com os institutos da fase investigatória.
O Inquérito Policial é o instrumento, no direito processual penal, que legalmente materializa a investigação criminal, presidida pela autoridade policial, nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal.
Nessa linha de argumentação o artigo 6º do CPP descreve, em rol exemplificativo, as ações que a autoridade policial deverá tomar ao ter conhecimento do cometimento de uma infração penal, cujo inciso III assim assevera: “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”.
Numa sociedade ideal, a autoridade policial deve comparecer a todos os locais de crimes e fazer o levantamento necessário com a colheita de provas que julgar pertinentes (além de outras providências). Considerando a realidade da polícia civil do estado do Tocantins (e praticamente de todos os outros estados da Federação), por uma série de aspectos – que demandariam um artigo inteiro para serem discutidos – é impossível que a autoridade policial se faça presente em todos os locais de crimes. Contudo, em se tratando de crimes mais graves (via de regra, os que envolvem violência), é imprescindível o comparecimento do delegado e de sua equipe para o início da investigação.
Dessa forma, ao tomar conhecimento do cometimento de um homicídio, é fundamental a presença da equipe da polícia civil. Nos dizeres do mestre Nelson Hungria “o homicídio é o tipo central de crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia de crimes. É o crime por excelência.” No contexto social em que vivemos o homicídio causa uma repulsa, uma reprovação, é a mais chocante violação do senso moral médio.
A resposta que as forças de segurança pública – mormente a polícia civil – devem dar, após o cometimento de crimes deste jaez, dependem de uma efetiva investigação, e, via de regra, a eficiência está diretamente ligada ao imediatismo. Explicando melhor, o calor do momento tem se mostrado fundamental para o esclarecimento (e muitas vezes até a prisão em flagrante) nos crimes de homicídio. Uma equipe treinada, experiente, vivida, com tirocínio sabe as medidas a serem tomadas. Sabe diferenciar o que tem e o que não tem importância no corpo de delito. Sabe, muitas vezes, identificar, de pronto, se uma testemunha está mentindo ou falando a verdade.
O cuidado que o delegado de polícia (e todos os policiais envolvidos na investigação) devem ter na colheita de provas tem um objetivo muito além do auto de prisão em flagrante ou do indiciamento em outro momento no inquérito policial. Ver um autor de homicídio (identificado através de diligências da polícia civil) condenado pelo tribunal do júri traz uma sensação de dever cumprido. É o reconhecimento de um trabalho bem feito.
Um caso concreto, que aconteceu comigo, comprova a importância do mencionado princípio do imediatismo na investigação de crimes contra a vida. Houve uma tentativa de homicídio, em 2013, no Recanto das Emas (Região Administrativa do DF), área periférica e violenta onde, à época, eu era agente de polícia na delegacia circunscricional (27ª DP). Um indivíduo foi baleado, numa quarta-feira, e foi socorrido para o Hospital de Base. Fui ao local do crime junto com outros policiais e começamos a levantar as informações no intuito de identificar o autor. Apuramos que o atirador era conhecido pela alcunha de “PC”, morador da quadra 402 do Recanto das Emas. Inicialmente não foi possível levantar maiores dados sobre PC que levassem à sua qualificação. Pois bem, de posse dessas informações, nos deslocamos até o hospital para entrevistar a vítima. Vários projéteis a atingiram, sendo um deles, na boca, de forma que ela não tinha condições de conversar. Escrevi então, em um pedaço de papel, “PC da 402” e indaguei se referido indivíduo seria o autor dos disparos. A vítima ficou nitidamente exaltada e nervosa, afirmando positivamente com a cabeça e com as mãos. Beleza, já sabia quem era o autor.
Durante a quinta-feira, realizamos várias pesquisas nos sistemas da polícia e logramos êxito em qualificar PC. Ainda me recordo do nome: Francisco das Chagas Fortes Silva, contumaz autor de crimes e velho conhecido da PCDF. Assim, na sexta-feira providenciamos o auto de reconhecimento fotográfico para levar ao hospital e a vítima fazer o reconhecimento nos termos da legislação processual penal. Ato contínuo, na segunda-feira, nos deslocamos, mais uma vez, para o Hospital de Base para materializar a importante prova (reconhecimento fotográfico) essencial para a identificação do autor. Contudo, qual não foi a nossa surpresa ao tomarmos conhecimento de que a vítima morreu no final de semana, em razão da gravidade dos ferimentos experimentados. Pra resumir o desfecho da história, não obstante a vítima não tenha realizado o reconhecimento fotográfico, através de outras provas (dentre elas o meu testemunho) “PC” foi condenado pelo crime de homicídio. Mas esta experiência me serviu de aprendizado. Talvez, se ainda na sexta-feira, eu tivesse levado o documento para a vítima assinar, o reconhecimento fotográfico teria sido feito e, uma prova muito importante teria sido produzida o que facilitaria, por certo, a condenação. Numa investigação, qualquer tempo faz diferença, um dia a mais ou um dia a menos pode significar, como nesse caso, a perda de uma vida.
O artigo 155 do Código de Processo Penal, com a nova redação dada pela lei 11.690/2008, segundo a qual “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” vem a reforçar ainda mais a importância da fase de investigação preliminar. No exemplo do caso concreto mencionado alhures, se a vítima tivesse reconhecido o autor, e morrido no dia seguinte, esta prova seria uma prova “não repetível” e o juiz poderia, em tese, fundamentar sua decisão exclusivamente com base nessa prova. Uma prova produzida no corpo de inquérito policial.
Observa-se, portanto, que a polícia judiciária desempenha papel fundamental na fase de investigação preliminar cuja atuação é imperativa para a fase de persecução penal. Em verdade, os elementos angariados pela autoridade policial, quando o trabalho é realizado com qualidade, dedicação e esmero, são a base para uma futura condenação do autor da infração penal. Devemos nos atentar para os detalhes, na busca do levantamento de indícios e provas robustas para a comprovação da autoria e materialidade. Um lapso na colheita de provas pode significar a falta de uma ferradura na pata do cavalo, um pequeno detalhe que pode fazer toda uma diferença.
BERNARDO JOSÉ ROCHA PINTO
É delegado de Polícia em Pedro Afonso. Formado pela UFT em 2004 e pós-graduado em investigação policial
Na e-mail: comunicacao@sindepol-to.com.br