Numa complexa e técnica decisão do dia 22 de março, o juiz Wellington Magalhães, da 1ª Vara da Comarca de Cristalândia, condenou o Estado e o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) em ação ambiental movida pelo Ministério Público Estadual (MPE) por conta da má utilização das águas da Bacia do Rio Formoso. A sentença foi proferida após seis anos de audiências públicas e tentativas da Justiça de mediar o conflito de interesses entre produtores, Estado e a conservação da bacia hidrográfica localizada nos municípios de Lagoa da Confusão e Cristalândia.
Na decisão, o magistrado considerou as quatro fases do Projeto de Gestão de Alto Nível da Bacia do Rio Formoso: de diagnóstico de disponibilidade hídrica, de diagnóstico da demanda hídrica, de monitoramento eletrônico da bacia; e de revisão das outorgas e das regras de operação.
PRIMEIRA FASE
O juiz apontou falhas do Naturatins e do Estado em todas essas quatro fases.
Assim, na primeira, determinou:
– a utilização das estações do Rio Dueré, Formoso, Xavante e Uburu para dimensionamento da disponibilidade hídrica, para fim de concessão de outorgas;
– que seja exigida a instalação de estações automáticas de monitoramento de nível e vazão nas barragens elevatórias, imediatamente a montante e a jusante;
– a instalação de novas estações fluviométricas automáticas nos pontos críticos entre as elevatórias;
– e, por fim, a integração de todos os dados de disponibilidade hídrica, inclusive das barragens elevatórias ao Sistema de Informação Gestão de Alto Nível (GAN), desenvolvido pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) para o monitoramento e gestão dos recursos hídricos relacionados à disponibilidade de água, por meio da coleta de dados monitorados pelas estações de monitoramento convencionais e telemétricas da Agência Nacional de Águas via serviços web. Ou o Estado pode optar por um sistema equivalente disponível no mercado.
Conforme a sentença, a UFT apontou incertezas associadas à quantidade de água disponível nos rios da bacia, pois, apesar de terem sido instaladas novas estações de monitoramento, as séries históricas de vazão possuem muitas falhas que não são consistentes para o uso em estudos hidrológicos e dimensionamentos hidráulicos, com exceção de uma única estação, da Agência Nacional de Águas, no Rio Formoso, na altura da Praia Alta. Apesar da conclusão dos estudos de disponibilidade hídrica, continua o magistrado, as recomendações técnicas apresentadas e discutidas em audiências públicas não foram acolhidas em sua totalidade, o que tem sido um entrave à gestão sustentável da bacia, pois, diante da incerteza quanto aos dados e disponibilidade hídrica, torna impossível uma gestão responsável.
O juiz ainda apontou, sobre a influência das elevatórias construídas ao longo dos rios da bacia, que se tratam de estruturas arcaicas que não fornecem dados de volume de água dos reservatórios, nem a montante nem a jusante.
SEGUNDA FASE
Na segunda fase, de diagnóstico da demanda hídrica, o magistrado determinou que Estado e Naturatins:
– passem a considerar no cálculo do balanço hídrico das vazões outorgáveis, especificamente para o meses de junho, julho e agosto, o volume de águas dos reservatórios das elevatórias.
– Além disso, que respeitem os limites de captação de água desses três meses;
– e ainda disponibilizem em sua página de internet, no prazo de 60 dias, preferencialmente na aba do Comitê de Bacia, todas as outorgas de direito de uso dos recursos hídricos vigentes ou suspensas, “de forma clara, objetiva e de fácil assimilação pelo público em geral […] resguardando as informações de natureza sensível”.
– Por fim, o juiz determinou que se realize estudo técnico, no prazo de 90 dias, para viabilidade da substituição de outorgas individualizadas por outorga coletiva em barramentos/elevatórias, facultando aos usuários a possibilidade de realizar esse estudo e submetê-lo ao órgão ambiental.
A UFT apontou falhas relevantes na aplicação do instrumento de outorga de direito de uso dos recursos hídricos e com vazões outorgadas superiores em até 20 vezes a vazão outorgável, com base no critério de 75% da vazão mínima com permanência de 90% estabelecida pelo decreto estadual 2432/2005. O juiz observou que o cálculo de disponibilidade hídrica outorgável tem sido feito com base exclusivamente nos dados da estação localizada na altura da Barreira da Cruz, no Rio Javaés, braço menor do Rio Araguaia, com vazões mínimas muito superiores às vazões dos rios Dueré, Formoso, Xavante e Urubu. O magistrado ainda apontou que, apesar das recomendações do pacto das partes envolvidas para uma gestão sustentável da bacia, as outorgas demanda das autorizadas ainda não consideram a real disponibilidade hídrica nos meses de junho, julho e agosto, período em que as barragens elevatórias entram em operação, passando a influenciar o comportamento hidrológico nos cursos d’água.
Ele continuou: “Além das vazões outorgadas se basearem numa estação fora da bacia do Rio Formoso, também não tem sido considerado o volume de água armazenado nas barragens elevatórias para o cálculo do Balanço hídrico entre demanda e a disponibilidade de água nos meses de junho, julho e agosto, período em que essas estruturas entram em operação”.
TERCEIRA FASE
Na terceira fase, de monitoramento eletrônico da bacia, o juiz determinou que Estado e Naturatins
– notifiquem anualmente (até 31 de janeiro) os produtores rurais para quem mantenham seus medidores em perfeito funcionamento para Transmissão e processamento de dados de captação;
– que exijam anualmente (até 31 de maio) o certificado de manutenção preventiva e/ou corretiva dos medidores de captação;
– que suspendam a outorga do produtor rural cujo medidor estiver inoperante, desconectado e/ou não transmitindo dados de captação para o sistema GAN (o equivalente no mercado), por mais de 15 dias nos meses de junho, julho e agosto, e por mais de 30 dias nos demais meses do ano;
– que custeiam financeiramente os serviços de manutenção, disponibilização e evolução do sistema GAN (ou equivalente disponível no mercado), especialmente através de recursos oriundos da cobrança pelo uso das águas dos rios da bacia, com fins de institucionalização da referida solução tecnológica, no prazo de 90 dias;
– que institucionalizem, do prazo de 90 dias, por ato normativo o sistema GAN (ou equivalente no mercado), para o monitoramento remoto da disponibilidade hídrica dos cursos d’água e reservatório da demanda hídrica das captações, a fim de aprimorar a gestão e fiscalização dos recursos hídricos da Bacia do Rio Formoso como forma de garantir a segurança hídrica para os empreendimentos devidamente licenciados e outorgados.
Acontece que a UFT afirmou que é automação do monitoramento das bacias produziu como resultado uma tecnologia inédita pela forma remota de captação. Até então inexistente no país, foi criada a metodologia para medição e telemetria da vazão, volume e duração das captações superficiais com disponibilização das leituras em tempo real em um portal de informações na internet. No entanto, o juiz apontou que, para que o sistema GAN cumpra a sua finalidade de governança democrática dos recursos hídricos, é imprescindível a manutenção permanente, preventiva ou corretiva dos medidores instalados na bombas hidráulicas espalhadas ao longo da bacia do Rio Formoso. Inclusive, o magistrado observou e trata-se de obrigação assumida pelos produtores rurais e também pelo estado e pelo Naturatins, que se comprometeram a fiscalizar e cobrar dos produtores rurais a manutenção dos medidores hidráulicos de modo a garantir a Transmissão das vazões captadas ao sistema GAN. Contudo, a sentença afirma que tem sido comum o descumprimento desse compromisso por parte dos produtores rurais.
QUARTA FASE
Na quarta etapa, entre outros, o juiz determinou que:
– se conclua a fase de revisão de outorgas e das regras de operação, com restrita observância de todas as premissas estabelecidas, no prazo improrrogável de 180 dias;
– que se notifique, no prazo de 30 dias todos os produtores rurais usuários dos recursos hídricos da bacia do Rio Formoso, concedendo lhes o prazo de 30 dias para firmarem Termo de Ajustamento de Conduta destinado à regularização de suas licenças ambientais e passivos ambientais apontadas na análise dos seus respectivos CAR’s;
– que se amplie a transparência e qualidade técnica dos trabalhos desenvolvidos pelo comitê de bacia e sua Câmara Técnica;
– que se realize no prazo de 180 dias estudo de viabilidade de se criar uma Agência de Águas;
– que se fiscalize, autue, multe e responsabilize todo usuário que esteja captando água da bacia do Rio Formoso sem outorga vigente ou em conformidade com os limites mensais de vazão, duração e volume.
O magistrado lembrou que a fase de revisão de outorgas e das regras de operação é um compromisso assumido pelo Estado, Naturatins e produtores rurais, através de suas associações, contudo, apesar de todos os esforços empreendidos pela justiça ao longo dos últimos anos, até o momento não é possível afirmar que tenha sido concluída a bom termo. O juiz criticou, inclusive, a atuação do Naturatins. Ele afirma, por exemplo, que, de um total de 65 propriedades analisadas, via Cadastros Ambientais Rurais (CAR’s), apenas 12 tiveram conclusão favorável do órgão ambiental do Estado à concessão da outorga do direito do uso dos recursos hídricos e 53 desfavoráveis. “Não obstante a propriedade possuir conclusão desfavorável [da análise do CAR], na maioria dos casos o Naturatins foi favorável à concessão da outorga do direito de uso dos recursos hídricos”, escreveu o juiz.
Outro fato registrado pelo magistrado, que ele considerou “de extrema importância e preocupação”, é que nenhuma outorga expedida e revisada autoriza a captação de recursos hídricos nos meses de agosto, setembro e outubro, os mais críticos diante da seca severa na região da bacia do Rio Formoso. “No entanto, é público e notório que os produtores rurais sempre captaram a água no mês de agosto, quando se está finalizando o ciclo de plantio de soja, milho feijão ou melancia”, observou.
GRAVE FATOR DE RISCO
Para o juiz, ausência de autorização para captações nesses 3 meses “é um grave fator de risco, porque não dizer de insegurança jurídica e hídrica, principalmente porque como já mencionado, justamente nesses meses os rios da bacia baixam drasticamente por ausência de chuvas, ao passo que as captações de águas se elevam drasticamente para atender aos projetos de irrigação da soja”.
COMITÊ DA BACIA FALHA
O magistrado também crítica a atuação do Comitê da Bacia do Rio Formoso, que, segundo ele, “falha na sua missão de arbitrar conflitos”. “A vasta prova documental produzida ao longo das audiências públicas demonstra, induvidosamente, algumas dificuldades do comitê de bacia, que são dignas de preocupação, como, por exemplo, sua dificuldade em arbitrar os conflitos existentes entre os médios e grandes produtores rurais”, anotou o juiz.
Para ele, diante da análise dos documentos, “aparentemente o comitê de bacia tem transferido exclusivamente aos usuários a responsabilidade de definir critérios de captação, atuando meramente como avalista, fiador e homóloga dor, em flagrante violação artigo 38 da lei 9433/97 e ao artigo 26 dê seu regimento interno, que dispõe ser atribuição da Câmara técnica o exame de matérias específicas, de caráter técnico-científico e institucional, para subsidiar a tomada de decisões em matéria de gestão de recursos hídricos da bacia”.
Assim o juiz conclui que é “indispensável que o comitê de bacia e sua Câmara técnica passem a adotar uma postura de maior transparência de enfrentamento dos dados de monitoramento da disponibilidade hídrica e da demanda outorgada”. Além disso, o magistrado afirma que as reuniões do comitê de bacia também precisam de maior divulgação, chegar ao conhecimento de toda a sociedade, não apenas de seus integrantes.