Não haverá como antes porque não nos deixarão envelhecer. Eu fico muito feliz por isso porque me livro de muitas coisas. De entender que o tempo passa. De que a gente muda. De que aquela olhada no espelho pela manhã de hoje foi diferente da olhada no espelho na manhã de ontem. De que o creme que a amiga falou para colocar bem no cantinho dos olhos ao deitar já não interessa mais. E por que haveria de haver amanhã?
Dois por cinquenta centavos! Não perca essa chance!
Já são mais de 100 mil mortos. Você vai ficar em casa?
Matamos, de uma vez só, o para sempre e o amanhã será um novo dia. Graças aos deuses e deusas me livrei. Esperem só um pouco que tenho que dar de mamar ao meu pequeno. Só um minutinho. Espera, menino! É que ele mama que nem bezerro nos meus peitos, e não sei se vai ter leite amanhã. O cara do carro do abacaxi faz tempo que passou aqui na minha rua falando três por um real e cinquenta. O do sorvete faz mais de mês que passou. Aliás, eu nunca mais vi ninguém passando por aqui.
Docinho feito algodão doce. Traga a sacola pro docinho da família!
Governo não reconhece doença. Mortos passam dos 200 mil.
Minha vagina não vai mais envelhecer. Todos os dias no final do dia eu olho para ela e ela continua lá, sem libido, sem aceno. Ninguém mais mexe com ela. Mexi nela esses dias. Comecei uma masturbação, mas o rádio estava ligado e ouvi que se a gente não se cuidar nesses dias perigosos a gente pode morrer. Tava no meio da siririca, quase gozando, e tive que parar. Ouvi que muita gente não está passando aqui porque já morreu. Minha vagina tava na intenção de um caminhoneiro quando cortaram meu gozo. Caminhoneiro é bom. Lembro da última paralisação. Juntei as pernas e tentei dormir. No rádio falava para mais de 300 mil caixões. Não há quem goze com isso.
Levanta. O quê? Levanta. Pra quê? Não pode ficar aí não, não há mais espaço. Acho que foi um sonho. Acordei de manhã com o bezerrinho chorando e meus peitos explodindo de leite. Era eu e ele. O pai dele me deixou com quatro meses de bucho. Toma meu peito, mata tua fome. Ele nem abriu a boca. Esse menino a cada dia tá mais esquisito. Cor estranha.
A senhora tem que voltar amanhã porque hoje não tem mais como lhe atender. Não sou eu não, doutor, é meu bezerrinho. Bezerrinho? Sim. É assim que chamo Jesus, meu filho. Volte amanhã. Mas ele tá muito quente. Amanhã. Ele tá esquisito, doutor. Por favor, minha senhora, amanhã!
Liguei o rádio: para quem não conseguiu médico hoje anota a dica: banho de assento, chá de cidreira uma vez por dia e levanta as mãos para os céus que Deus está cuidando de todos. Não desanimem. Se tiver febre, banho de assento. Para as mulheres com fogo no rabo, orem. Para os homens, com direito, Deus manda colocar o dedo no cu e tirar, colocar e tirar, colocar e tirar, colocar e tirar até medir a temperatura. Salve! Qualquer coisa o Governo manda ir às ruas, abraçar, chorar, gritar, fornicar em praça pública que ninguém vai fazer nada. Deus está conosco!
Acordei quente. Meu bezerrinho também. E agora, doutor? Minha senhora siga por esse corredor direto e vire à esquerda. Obrigada. Minha vagina queimava, meus peitos queimavam, meu bezerrinho queimava.
Mais de 320 mil mortos por conta da peste. Governo ignora doença e pandemia mata milhões por dia. Não tem cura ainda. Se você está fora de casa melhor voltar e se isolar. Mas se quiser dar uma saidinha… Deus acima de tudo!
Vi o pai do meu filho numa cama na televisão do corredor. Oi moça. Pois não, senhora. O doutor pediu para eu vir aqui porque meu bezerrinho… O quê? É… meu filho… faz três dias que tá em febre. Fez o teste? Que teste? O da peste. Não. Vá pra fila, por favor. Ele tá queimando, moça. E pelo visto a senhora também, dá pra ver. Minha vagina era o que dividia meu corpo ao meio.
Positivo. Pros dois.
E agora, doutor? Seria bom a senhora ir para casa porque aqui não tem espaço para acomodá-los. Cadê meu filho? Que filho? Meu bezerrinho! Aqui não é ambiente para bezerrinhos, minha senhora. Onde ele está? Quem? Meu filho que eu trouxe para o senhor ver. Eu não estou mais aqui, minha senhora. Nem a senhora. Nem o seu filho.
Próximo!
RAMIRO BAVIER
É jornalista em Palmas
bavier@gmail.com