A 4ª Turma da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO) marcou para esta quarta-feira, 2, julgamento de recurso em uma ação possessória de terras no município de Campos Lindos. O caso é emblemático, porque o resultado pode repercutir em outros 288 processos de disputas de terras, que tiveram a atuação de um perito nomeado judicialmente, cuja falta de habilitação para atuar em perícias demarcatórias de terras está sendo contestada.
O questionamento ao TJTO se deu numa ação possessória de terras no município de Campos Lindos (originária da Comarca de Goiatins) entre o agricultor Daniel Clemente de Oliveira e o produtor rural Iakov Kalungin, que se arrasta há 15 anos na Justiça. Kalungin obteve decisão favorável do juízo de primeiro grau, que está sendo contestada na segunda instância.
Segundo a defesa de Clemente, Adalberto Lacerda Almeida, nomeado perito nesta e em outras dezenas de ações, é engenheiro mecânico e, portanto, conforme a legislação federal que rege a profissão de engenheiro e suas especialidades, não tem formação para realizar perícia de terras, “o que deveria ser feito por outros tipos de profissionais, como engenheiro cartográfico ou agrimensor, entre outros”. Além da ausência de qualificação, o recurso aponta falsificação de documentos apresentados no processo, entre eles, títulos de terra.
Advogado de Daniel, Tenório César da Fonseca, disse que sua expectativa é de que o Tribunal de Justiça cumpra a lei. “Só espero que o TJ decida de acordo com o que está estabelecido na lei, que, por sinal, é bem clara, a respeito dos requisitos para realização de perícias desse tipo”, comentou Tenório. “Ele próprio [Adalberto] admite que não tem qualificação, está nos autos”, acrescentou. Para Tenório, o TJ deve declarar nula a perícia e, com isso, anular todo o processo. “Ou que seja julgado procedente nosso recurso, já que a decisão de primeiro grau está baseada em uma perícia sem valor legal”.
Outro lado
No ano passado, a advogada de Iakov Kalungin, Nayarah Ribeiro, informou ao CT que também havia recorrido da sentença, já que o juiz de primeiro grau determinou a reintegração de posse, mas estabeleceu como condição que Daniel Clemente fosse indenizado por eventuais benfeitorias realizadas na terra.
“O Daniel recorreu porque perdeu e nós também recorremos porque entendemos que essa indenização não é devida. O Daniel sempre agiu de má-fé, quando ele comprou esse título já sabia que essa terra tinha dono. Isso não é uma coisa que a gente fala da boca pra fora. A gente fala e prova com documentos e tudo isso está dentro do processo”, argumentou na época.
A defesa de Kalungin ainda rebateu a alegação da defesa de Daniel Clemente de que os títulos da terra apresentados por Iakov Kalungin no processo são falsos não passa de “afirmações levianas”. “Essa alegação de falsidade é mais do que leviana, porque se eles alegam falsidade, eles não provaram nada no processo. Então, eles falam isso, mas não provam. O título que eles falam que é nulo é o documento do Itertins, que o próprio Estado do Tocantins concedeu ao Iakov no ato da venda daquele lote, mas eles não provaram isso”.
Sobre o laudo expedido pelo engenheiro mecânico, a defesa de Kalungin mencionou que o perito é associado ao Tribunal de Justiça e já fez diversas perícias judiciais. “Ele é habilitado. Para ser perito em qualquer Comarca do Tocantins é preciso fazer um cadastramento no Tribunal de Justiça, você tem que provar a habilitação técnica e uma série de requisitos”, defendeu.
Entenda o caso
A ação de manutenção de posse foi proposta em junho de 2002 por Iakov Kalungin, alegando que parte de suas terras no loteamento Santa Catarina havia sido invadida por Daniel Clemente de Oliveira. No início, a magistrada que primeiro julgou o processo na Comarca de Goiatins negou a liminar para reintegração de posse. Kalungin recorreu ao TJTO e em 25 de janeiro de 2010, o desembargador Daniel Negri, também negou a liminar.
Em outubro de 2014, contudo, o juiz da Comarca de Goiatins, Luatom Bezerra Adelino de Lima, substituiu o perito que estava no caso por Adalberto Lacerda Almeida, que se apresenta como engenheiro e perito judicial. Baseado na perícia realizada por Adalberto, o magistrado de primeiro grau deferiu a ação proposta por Kalungin, determinando que ele ficasse com a posse da terra. Inconformado com a decisão, Daniel Clemente recorreu ao TJ.
O julgamento na 1ª Câmara Cível chegou a ser iniciado em setembro do ano passado com o voto do relator, o juiz substituto Gil de Araújo Correia que votou pela manutenção da sentença. Depois de votar divergente, a desembargadora Etelvina Sampaio refluiu e apresentou um voto-vista. Ela ponderou que seria “sensato refluir do voto e converter o julgamento em diligência”. A 1ª Câmara Cível acatou, por unanimidade. Assim, foi determinado que Adalberto apresentasse documentação comprovando que possui qualificação técnica para realizar perícias. O engenheiro apresentou suas alegações, que foram contestadas pela defesa de Daniel Clemente.
“Expertise empírica não legitima o exercício da perícia”, resumiu o advogado Tenório César da Fonseca nas considerações sobre as alegações do perito, acrescentando que “para a perícia judicial de matérias de conhecimento reguladas por órgão de classe profissional, a qualificação do conhecimento científico do perito é devidamente referendada pelo órgão profissional competente, o que não ocorre com o perito nomeado no caso”.
Por fim, o advogado apontou que “mesmo sem ter conhecimento e capacidade técnica”, encontrou o “assustador volume de perícias de agrimensura realizadas por ele, 288 perícias, o que mostra o absurdo e desrespeito constante da legislação vigente e o prejuízo que ele possivelmente causou para as partes”.
Os advogados de Clemente oficiaram o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-TO), que informou que há no Estado do Tocantins 98 profissionais (engenheiros) com habilitação para realizar perícias de terras no Estado, conforme a Resolução do Confea, dos quais um em Campos Lindos.
A defesa oficiou novamente o Crea, questionando sobre a validade das perícias realizadas por perito engenheiro mecânico. Em resposta ao questionamento, assinada por Euclides Muniz da Silva, líder da Divisão de Registro e Cadastro do Crea-TO, no dia 2 de maio de 2015, a autarquia federal informou que “engenheiro mecânico não possui atribuições para execução de serviços na área de topografia” e que “se o profissional não possui atribuições para a área e não anotou a devida Anotação de Responsabilidade Técnica, o documento em questão é inválido”.